Não tenho nada a acrescentar ao que já foi escrito acerca do artigo da Maria de Fátima Bonifácio – revejo-me particularmente na análise do José Manuel Fernandes, lamentando que ela estivesse tão errada nos pressupostos e tão disponível para generalizações abusivas. Mas tenho algo a dizer sobre o assunto de fundo, que é a criação de mecanismos de discriminação positiva (incluindo quotas) para minorias étnicas, nomeadamente para o acesso ao ensino superior, como está a ser ponderado pelo PS (que atirou para o debate a possibilidade de o ensino superior baixar os requisitos de entrada propositadamente) e foi há dias sugerido por um grupo de trabalho da Assembleia da República. De resto, o relato jornalístico dessa discussão parlamentar dá conta das críticas dirigidas pelas associações anti-racismo ao deputado Duarte Marques (PSD), por este se ter assumido contra as quotas. Ora, antes que a ideia ganhe tracção, importa ser absolutamente claro nesta matéria: a introdução de quotas (ou equivalente) no acesso ao ensino superior para negros ou ciganos (ou qualquer outra etnia) seria uma medida desastrosa. Dispensando aqui considerações filosóficas, há desde logo três razões técnicas que desaconselham a medida.

Primeiro, a introdução de quotas no acesso ao ensino superior é, por definição, uma má aplicação das quotas. Recorde-se que as quotas servem para evitar que, em processos de selecção com intervenção humana, existam discriminações ilegítimas que prejudiquem segmentos da população. Ora, essas intervenções humanas existem em vários sectores – por exemplo, no mercado de trabalho, onde os preconceitos sociais interferem na contratação e na remuneração – mas não existem no sistema de acesso ao ensino superior, que é um processo centralizado, determinado pelos desempenhos escolares e completamente “cego” em relação a género ou etnia. Ninguém é prejudicado através do sistema de acesso ao ensino superior por ser negro ou cigano, homem ou mulher.

O exemplo das quotas para as mulheres é esclarecedor em relação a este ponto. As mulheres têm sido historicamente prejudicadas no acesso a cargos de topo, nas remunerações e na selecção para cargos públicos ou políticos. Estas são questões que dependem de escolhas feitas por indivíduos, sendo evidente que a sub-representação das mulheres se deve a uma discriminação negativa no momento em que essas escolhas são feitas. As quotas que foram introduzidas na legislação visaram precisamente obrigar quem decide a contrariar essa discriminação negativa, impondo mínimos e standards. Concorde-se ou não, é para isso que servem as quotas. E isso não se enquadra no acesso ao ensino superior, que em Portugal é um processo sem intervenção humana e, portanto, sem possibilidade de estar ferido por discriminações de qualquer tipo. De resto, na frequência do ensino superior existe uma maioria clara de mulheres, porque, em média, as raparigas são mais aplicadas na escola (têm menos abandono escolar) e obtêm melhores resultados – julgo que a ninguém ocorrerá propor medidas de acesso facilitado aos cursos superiores para os rapazes.

O segundo problema das quotas (ou equivalente) no acesso ao superior é a sua ineficácia na resolução das desigualdades e discriminações em causa. Tudo começa antes, nas escolas, onde os jovens negros ou ciganos têm (em média) piores desempenhos, reflectindo-se isso depois no acesso ao ensino superior, muito ligado ao sucesso escolar. Ou seja, o que explica predominantemente o insucesso escolar no sistema educativo português não é a etnia, mas o perfil socioeconómico. Filhos de pais pouco qualificados e de famílias com baixos rendimentos têm uma maior probabilidade de retenções e de insucesso escolar. Dito de forma simples: nem as escolas públicas são racistas, nem o insucesso escolar tem a ver com a cor da pele – o mais duro obstáculo na Educação é a pobreza. Mesmo que, em alguns casos, pobreza e etnia minoritária andem de mãos-dadas, são problemas distintos: em elevada percentagem, as famílias de origens étnicas minoritárias têm baixas qualificações, empregos mal remunerados e residências em áreas periféricas (onde as escolas públicas têm de enfrentar gravíssimos desafios sociais).

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Isto serve para dizer que a introdução de mecanismos de discriminação positiva no acesso ao ensino superior em nada ajudaria os jovens negros ou ciganos a superar o obstáculo do insucesso escolar. Seria uma medida “faz-de-conta”, uma solução ilusória. Porque o combate ao insucesso escolar (de brancos, de negros, de ciganos, de todos) não se trava com quotas, mas com apoios sociais que enfrentem a pobreza, com escolas que se foquem nas necessidades específicas dos seus alunos, com programas de tutoria ou de acompanhamento personalizado, com escolas capazes de fazer da escolaridade obrigatória um elevador social. E, quando necessário, com medidas direccionadas às especificidades sociais de algumas comunidades – por exemplo, combater o abandono escolar das raparigas ciganas, impedir turmas-gueto só para ciganos (há escolas que as fazem), melhorar o enquadramento do ensino doméstico (para evitar que seja um atalho para o abandono escolar). É na inclusão e no combate ao insucesso escolar que os esforços devem ser investidos.

O terceiro problema da introdução de discriminação positiva (ou quotas) para negros ou ciganos no acesso ao ensino superior é a sua inaplicabilidade prática. Como determinar se um jovem candidato ao ensino superior tem origens negras ou ciganas? Avaliando se a cor da sua pele é suficientemente “não-branca”? A questão pode soar improvável, mas não é um pormenor: como aplicar uma regra que se pretende objectiva e transparente (discriminação positiva para negros e ciganos) se só a subjectividade pode avaliar a pertença a determinadas etnias, nomeadamente para aqueles que são filhos de pais com diversas origens? Há aqui um evidente risco de arbitrariedades e de novas discriminações – mostrando que a solução pode ser pior do que o problema.

Dir-me-ão alguns que pode fazer sentido a aplicação de discriminação positiva (incluindo quotas) para minorias étnicas noutras sectores que não o acesso à universidade. Todos temos uma opinião sobre a introdução de quotas, gostando muito ou nada da medida. Mas antes de se incendiar o debate, convém dar um passo atrás. Recentemente, defendi nesta coluna que os Censos 2021 deveriam incluir a pergunta (anónima) sobre a identidade étnica/racial dos portugueses. Fi-lo porque acredito que só com informação fiável se podem realizar bons diagnósticos e que só com bons diagnósticos se conseguem desenhar políticas públicas eficazes – soluções reais para problemas reais, em vez de soluções “faz-de-conta” para problemas incompreendidos. O debate em curso sobre o racismo e a introdução de quotas para negros ou ciganos mostra exemplarmente a falta que esses dados fazem. Primeiro, porque a actual proposta para discriminar positivamente os jovens negros ou ciganos no acesso ao ensino superior revela como facilmente se confundem diagnósticos – a baixa incidência de jovens negros na universidade tem sobretudo raiz no insucesso escolar, e isso não se resolve (apenas se disfarça) com quotas. Segundo, e mais importante, este debate mostrou como as políticas identitárias estão a impor-se e o quanto estas se aproveitam da ausência de dados comparáveis para instalar as suas considerações moralistas no debate. Ao contrário do que alguns receiam, a existência de dados sobre a composição étnica da população portuguesa nos Censos não iria reforçar as políticas identitárias, mas sim expurgá-las da ideologia e limitá-las às evidências empíricas. O fanatismo já está aí e só se derrotará com factos. Estes fazem cada vez mais falta ao debate.