É preciso continuar a discutir o texto de Maria de Fátima Bonifácio? É. Porque é necessário separar o trigo do joio. Sendo que naquele texto o trigo e o joio estão misturados de forma desesperante: a autora criticou uma má ideia – a introdução de quotas para minorias étnico-raciais – com péssimos argumentos, escrevendo algumas verdades à mistura com generalizações abusivas e caricatas. O resultado não é de forma alguma um “manifesto racista” – não há nenhum apelo ou defesa da discriminação ou segregação racial, nada nele incita ao ódio racial – e é próprio de intolerantes que os puritanos decretem o banimento da historiadora do espaço público, como não faltou quem defendesse.

Sendo amigo de Maria de Fátima Bonifácio não posso – até por isso – deixar de apontar publicamente os pontos em que discordo abertamente dela. E, também, de sublinhar que generalizações abusivas não anulam certas verdades que teve a frontalidade de apontar. Mas vamos por partes.

A passagem do texto que mais me arrepia é aquela em que defende que nem africanos nem ciganos “descendem dos Direitos Universais do Homem decretados pela Grande Revolução Francesa de 1789”. Isto porque não fariam parte de “uma entidade civilizacional e cultural milenária que dá pelo nome de Cristandade”.

Apetece-me dizer, sem meias palavras, que nada bate certo neste raciocínio.

Primeiro que tudo, até onde temos de recuar para podermos “pertencer à Cristandade”? É que, como Rui Ramos já recordou, os ciganos estão em Portugal há meio milénio, falam a nossa língua e adoptaram a nossa religião. Tal como adoptaram a religião dos países (cristãos) por onde se espalharam, fossem eles católicos como nós, protestantes ou ortodoxos.

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Depois, de que necessitamos para descender da “Grande Revolução Francesa”? Não tentaram os negros do Haiti uma revolução inspirada nesses princípios quase 30 anos antes (em 1791) que nós portugueses ensaiássemos a nossa revolução liberal (1820)? Acabou mal, bem sei, mas a Revolução Francesa também acabou muito mal, o que me leva o ponto seguinte.

Se tivesse de escolher um momento fundador para a formação política dos direitos humanos não seria seguramente a “Grande Revolução Francesa” de 1789, mas a anterior Revolução Americana de 1776, e as inspiradas palavras de Thomas Jefferson na Declaração de Independência, celebrada todos os 4 de Julho: “Consideramos estas verdades como autoevidentes, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade.”

Bem sei que a República Americana, que manteve a escravatura durante quase mais um século, não nasceu à altura desta ambição, mas a partir do momento em que proclamou o carácter universalista desta “verdade autoevidente” não posso achar que uns descendem dela e outros não. A minha ambição – e julgo que a ambição de todos – é precisamente que estes princípios sejam universalmente adaptados, algo que não posso limitar a uma entidade civilizacional específica.

O segundo conjunto de erros que, a meu ver, Fátima Bonifácio comete é tratar como realidades equiparáveis as dos africanos e as das comunidades ciganas. Historicamente são realidades bem diferentes, culturalmente também. Aquilo que torna difícil a integração de tantos ciganos (já lá irei) é muito diferente daquilo que barra o caminho à maioria dos africanos. Sobretudo, não faz qualquer sentido falar do racismo dos africanos como se este se distinguisse, por exemplo, do racismo dos europeus. Ou da sua xenofobia, uma palavra de origem grega que significa “medo dos estrangeiros” — e não “ódio aos estrangeiros” — e que não distingue raças.

Aquilo que os são-tomenses dizem dos angolanos será muito diferente do que muitos portugueses dizem dos espanhóis? Ou os ingleses dos franceses e vice-versa? Ou os milaneses dos sicilianos? O que não posso afirmar, o que é falso, é a generalização: “os africanos são abertamente racistas”. Não são, ou não serão mais do que naturalmente são todos os seres humanos, pois todos temos de ser educados a aceitar o diferente e a não ter medo do estrangeiro.

Sim, houve movimentos de libertação africanos que eram (que ainda são, no que deles sobra) abertamente racistas, mas outros não eram nem são. Mas também na nossa “milenar Cristandade” temos abundantes exemplos de racismo e discriminação. Temos até o pior de todos os horrores, o Holocausto.

O que interessa, o que importa então saber? A meu ver que se hoje estamos mais perto das “verdades autoevidentes” de Thomas Jeffersson é também porque quem as recordou de forma mais marcante e memorável, no discurso “I have a dream”, foi um afro-descendente, para mais pastor cristão, chamado Martin Luther King.

E que risco traz consigo o raciocínio de Fátima Bonifácio? O de contribuir, pela afirmação de que há uns que “não têm a ver com o nosso mundo”, para a progressão das políticas identitárias. Isto é, para as novas obsessões da esquerda contemporânea, dessa esquerda que fatia a sociedade em função de micro-causas e vai criando as mais diferentes identidades, por definição hostis a uma comunidade de que se dizem vítimas oprimidas. Grupos identitários que não são apenas diferentes, antes se pretendem estanques. Seguindo por esse caminho iremos acrescentando cada vez mais variedades étnico-raciais ao nosso cardápio, da mesma forma que fomos acrescentando letras ao abecedário LGBTI+.

Ora é precisamente isso que me parece não só contrariar o interesse comum como, no longo prazo (que pode nem ser tão longo como isso), acabar a beneficiar aqueles que realmente são racistas e realmente exploram a xenofobia com fins políticos. É nesse ponto que temos de olhar para algumas das verdades desassombradamente afirmadas por Fátima Bonifácio.

Aqui não me vou fazer de parvo: muito do que escreveu sobre o comportamento das comunidades ciganas corresponde à experiência de quem convive de mais perto com elas. Não é regra? Seguramente que não é. Mas é difícil negar que o problema com a cultura cigana é que ela recusa integrar-se. Há excepções – há sempre excepções –, mas a persistência numa vida muitas vezes nas margens da modernidade cria muitas zonas de fricção que só por teimosa cegueira fingimos não existirem. Teimosa cegueira e medo de cairmos no preconceito xenófobo.

Contudo, a realidade está lá, não desaparece. Um exemplo recente, entre muitos possíveis. Recentemente uma autarca do PAN dirigiu à sua Assembleia Municipal um documento onde manifestava a sua preocupação por verificar “que existe uma etnia que se multiplicou e que todos os dias se passeiam pela Moita e arredores, empilhados em cima de carroças puxadas por um único cavalo subnutrido” (sic). Neste caso, a preocupação com o cavalo subnutrido foi submersa pela indignação em torno referência à “etnia que se multiplicou”, tendo o PAN obrigado a sua eleita a retratar-se. Foi um caso raro em que as pessoas passaram, nas prioridades daquele partido, à frente dos animais, mas passaram para abafar um problema de percepção pública, pois a verdade é que entretanto a carroça não deve ter desaparecido das ruas da Moita. Mas longe das ruas da vila preferiu-se o silêncio.

Há, de resto, uma espécie de “omertà” – lei do silêncio – em vigor na comunicação social que leva a que se omita sempre a etnia dos envolvidos em crimes ou desacatos quando se trata de ciganos. Sempre em nome de não acicatar a xenofobia, o que é meritório mas, como tudo na vida, tem um reverso da medalha: há uma parte da realidade que nunca é do conhecimento geral. Mas é do conhecimento de quem convive com estas realidades – e quem convive com tais realidades são por regra outras comunidades igualmente pobres, também elas menos instruídas e seguramente vulneráveis a discursos demagógicos.

Fazer de conta que somos todos cidadãos exemplares e que a culpa das tensões existentes entre comunidades é sempre culpa ou do racismo dos brancos ou da violência (e racismo) das polícias, ignorar que há mesmo comportamentos como os descritos por Fátima Bonifácio (mesmo que não sejam generalizados), fazer discursos moralistas quando se vive no conforto do centro das grandes cidades, tudo isso contribuiu mais para fazer crescer sentimentos racistas do que reconhecer que há um problema de integração das minorias ciganas. E que esse problema é cultural, não apenas económico, nem criado por uma segregação artificial, mas mais depressa por uma auto-segregação secular.

É pena que os termos em que Maria de Fátima Bonifácio colocou esta questão tenham sido mais destrutivos do que construtivos. É que se o caminho não se faz criando quotas, também não se pode proclamar que certas minorias não são do nosso mundo. O próprio sentido de Cristandade grita-nos o contrário. Tal como é universal a ambição, iluminista, dos direitos humanos.