Em 2015 saiu o romance 2084, La Fin du Monde, de Boualem Sansal, ancorado em 1984, de Orwell.

Em 2084 vive-se a experiência do totalitarismo. Porém um totalitarismo religioso que tem à cabeça Abi, profeta por direito divino e representante, Delegado, de Yolah. Percebemos que Abistan, ou seja, toda a civilização conhecida, é a substanciação de Yolah. Vive-se de e para Yolah num quotidiano super-normativo e hiper-ritualizado, todavia onde o ritual substituiu o significado e o símbolo vale per se.

Quem, o que é Yolah? O embuste, o simulacro de Deus único. É, de facto, o poder totalizante, absoluto, despótico que não permite o pensamento, só a submissão. Também não permite a memória de um tempo anterior pois não existe história. Nem diversidade: não há alteridade porque não há individualidade. Tudo e todos são diligentemente vigiados para a detecção de qualquer desvio – e não é que não haja privacidade, o que não pode haver é sequer a ideia de privacidade. Todos são «eu». Não há «outro». Não há diferença, se houver, é inimiga. Porém até a palavra «inimigo» supõe uma fraqueza incomportável do regime e desaparece do vocabulário: a língua, como em Orwell, é uma e serve ao pensamento único. Pode-se ser aquilo que não se consegue, não se sabe pensar? O ser ideal não deverá ser consubstancial a Yolah, portanto, indiferenciado?

Ati, o herói de 2084, procura a fronteira deste estado, império feudal que, desde a raiz do pensamento se estendeu a quase todos os lugares e pessoas.

Não deixa de ser intimidador que estes pressupostos de um romance sobre o totalitarismo pseudo-religioso, que Boualem Sansal dirigiu para um Estado Islâmico, se apliquem na perfeição ao Movimento de Justiça Social, vulgo woke. Jung afirmou que as grandes verdades são paradoxais: as políticas identitárias estão a destruir a identidade.

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Abistan é já hoje uma parte consolidada da Academia, de uma corrente de pensamento político e filosófico que se iniciou nos anos 60 do século passado – a bem da verdade, mais cedo, com a Escola de Frankfurt, nos anos 20-30. Como de Abistan são todos os que se formaram nessa escola de pensamento desconstrutivista pós-moderno e fazem parte dos centros de decisão formal e informal e para quem a ciência e a razão, vícios do iluminismo colaborantes das estruturas de poder e do falso progresso, devem ser submetidas à ideologia política e à sua praxis – proponho, para reforçar a praxis, que diante de uma apendicite, levem o doente para o xamã/curandeiro/feiticeiro/sacerdote e o mediquem, se for étnica e culturalmente adequado, com prana.

Isto vem a propósito dos ataques a Ricardo Araújo Pereira por causa da sua última crónica. E também a propósito da mais recente adaptação de Jane Austen, Persuasion, já disponível na Netflix – de uma mediocridade constrangedora, apesar das flores postas em todos os altares woke. E das tranças de Rita Pereira. E dos pedidos de desculpa de Carolina Deslandes por apropriação cultural. Histórias de hiper-normatividade e vacuidade simbólica. E porque não «estou farta de viver num país em que cada um diz aquilo que lhe apetece»: chama-se liberdade de expressão.

Com o atraso do costume, Portugal entrou no circo das acusações públicas, pelourinhos, purgas, e reeducações de inspiração maoista – neste momento, estou absolutamente convencida de que o pensamento de fundo humanista cristão e greco-romano será, a curto prazo, um movimento clandestino: talvez venhamos a precisar de santo e senha para trocar os livros de Mark Twain e Homero. Sugiro Ati.

O tribalismo foi algo que superámos, não deveria ser o nosso presente. Principalmente quando já sabemos onde conduz o pensamento único uma vez estabelecido o inimigo. O inimigo é «eurocêntrico, branco, hétero-normativo, privilegiado».

Entre os muitos erros que cometemos diariamente, nós, civilização ocidental, acertamos muito. Sem elementos subjectivos, basta consultar os índices de esperança de vida, mortalidade infantil, riqueza per capita, alfabetização. À realidade política convém muito pouco a ficção ideológica. Essa está ao serviço das distopias.