Não, não me habituo. Nem me calo. Em 2005, o Luís Manuel Estevam Santos Silva, com vinte e três anos, foi barbaramente assassinado em Santiago do Cacém, quando tentava apaziguar os exaltados ânimos de uns jovens, em noite de festa local. Como capelão da residência universitária em que viveu, convivi com ele durante os anos do seu curso universitário e, por isso, sei bem o que é a dor pela perda de uma vida tão jovem e promissora. Revivi esse luto quando soube dos homicídios do Pedro Fonseca, no passado dia 28 de Dezembro, e do Luís Giovani Rodrigues, no último dia do ano. E, ao recordar o imenso pesar dos pais do Luís Manuel, pela perda do seu único filho, não pude deixar de fazer muito minhas também a dor e indignação dos pais do Pedro e do Giovani. Não, nunca me habituarei a uma morte assim. Nunca me calarei.

Desta tragédia em dó maior, deixo aqui três comentários, em homenagem ao Giovani e ao Pedro, sem esquecer o Luís Manuel. Estes testemunhos são também uma prece e um grito de revolta, pela injustiça de que os três foram inocentes vítimas.

A anatomia do nojo

Devo a Alexandre Camões Barbosa, médico fisiatra, o relato das mortes do Pedro e do Giovanni.

Em texto publicado na sua página de uma rede social, que significativamente intitulou Anatomia de um nojo, escreveu: “Recém-licenciado em engenharia, Pedro Fonseca, de 24 anos, havia jantado com os pais e, dado ser sábado à noite, combinou ir sair com amigos. Enquanto esperava pelo autocarro, às 11h da noite, no Campo Grande, foi abordado por três pessoas de raça negra, de nacionalidade guineense, com uma arma branca. Terá esboçado uma reacção ao assalto, pelo que foi espancado e brutalmente esfaqueado nas costas. Serifo Balde, o alegado homicida, terá dito em tribunal que Pedro Fonseca ‘se espetou na faca’, enquanto se tentava defender [….]. O jovem faleceu nessa noite. Declarado o óbito, foi de imediato aberta investigação na PJ por homicídio”.

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Na mesma publicação descreveu, nos seguintes termos, o assassinato de Luís Giovani Rodrigues: “O estudante do Politécnico de Bragança terá também saído num sábado à noite, uma semana antes. Na discoteca-bar, o seu grupo de amigos terá sido provocado e terá entrado em confronto com algumas pessoas [… que já se sabe não serem estudantes, nem] de etnia cigana. Separados pelo segurança do bar, a escaramuça terá continuado no exterior […]. No meio da escaramuça, Luís Giovani foi agredido na cabeça e, passados uns minutos, ficou inconsciente. Foi levado para o hospital. O caso de agressão foi sinalizado pela PSP. Faleceu a 31 de Dezembro.

Não obstante as semelhanças entre os dois casos, foi diferente o tratamento político e informativo que mereceram: “Pedro Fonseca não tinha nada politicamente a seu favor. Jovem, branco, português, de classe média, o seu assassínio em nada interessou” à extrema-esquerda, “nem à sua facção de arautos ‘anti-racismo’”. Pelo contrário, “Luís Giovani tinha tudo politicamente a seu favor: era um jovem bem-parecido, mas sobretudo de uma minoria racial. Por isso, e ainda não tendo o corpo arrefecido, já o não-sei-das-quantas-Soeiro vinha para o Facebook instigar as hostes […] contra aquilo que seria apelidado de ‘crime racista’, ‘linchamento’, ‘15 contra 1’, etc.

Ora – acrescenta o médico – […] veio a esclarecer-se que nem o crime foi ‘racista’, pois foi motivado por uma escaramuça; […] nem foi um linchamento”. Aliás, não é só este médico que o afirma: também o disse Orlando Rodrigues, presidente do Instituto Politécnico de Bragança, que Giovani frequentava, a família dele e a Associação de Alunos Africanos de Bragança (Público, 15-1-2020).

E conclui: “A anatomia do nojo destas duas vítimas é bem diferente. Uma é vista, usando a linguagem daquela esquerda política, como um ‘privilegiado’. O seu homicídio não dá votos […]. O facto de ter sido esfaqueado nas costas, enquanto aguardava por um autocarro, por guineenses, pouco significa porque, afinal, era um ‘privilegiado’ que foi morto por membros de uma minoria. Já a morte de Luís Giovani é um activo muito apetecível […]. Vendida a história falsa do ‘negro linchado por um bando de brancos’, está lançado o investimento para lucrar juros em votos. O facto de não ter sido um crime de ódio não interessa contar – não rende votos”.

A dor de uma mãe negra não está acima da dor de uma mãe branca.

Suzana Garcia, a propósito destes crimes hediondos e, sobretudo, do seu execrável aproveitamento político, fez uma intervenção notável na TVI.

A jurista manifestou-se “muito chocada pelo oportunismo típico de quem está só à caça de votos” e discriminou estes dois casos, em tudo semelhantes: “um negro assassinado por brancos e um branco assassinado por negros.” Mas, enquanto “no primeiro caso é racismo, no segundo já não é!

Suzana Garcia também se insurgiu contra os que se apressaram a generalizar que Portugal é um país racista: “há pessoas que, na ânsia e na voragem de ganharem votos, se dispõem a conspurcar o nome da nossa pátria e o legado da nossa cultura que, francamente, não é de matriz racista”. Como enfatizou, “a dor de uma mãe negra não está acima da dor de uma mãe branca”. Condenando o que considerou ser um instrumentalismo e oportunismo execráveis, explicou: “Quando nós exigimos um tratamento igual a todos os cidadãos de Portugal, não podemos depois querer tratamentos especiais e preferenciais […] para quando um deles sofre um crime hediondo, como este. Nós não temos, enquanto cidadãos, que pedir desculpas a uns se não as pedirmos aos outros: ou pedimos a todos, ou então não pedimos a uns em especial, só porque são cabo-verdianos”.

E acrescentou: “Quando o branco foi morto pelos pretos [sic], não suscitámos aqui nenhum incidente racista, nem dissemos que os imigrantes que vêm para aqui vêm fazer isto, ou aquilo, ou aqueloutro. Não dissemos nada. Da mesma forma, nada tínhamos que dizer porque agora a vítima foi um preto [sic]. É aqui que eu quero chegar: quando nós exigimos igualdade, temos que exigir a igualdade plenamente, não podemos depois instrumentalizá-la, como se uns fossem sempre as vitimazinhas e os outros os lobos maus”.

Pediu também responsabilidade aos políticos quando se expressam sobre este tipo de matérias: “uma deputada tem que ser responsável, não pode sacar mão de um argumento de racismo quando ela não percebe nada do que está a acontecer na investigação. Quem está na investigação diz que não há nenhuma conotação racial”, como o Observador noticiou na sua edição de 17-1-2020. De facto, a Polícia Judicial, ao contrário do que chegou a constar, nega que os suspeitos sejam ciganos, embora um deles tenha “ascendentes familiares na comunidade cigana”, o que o não faz membro dessa etnia, nem permite, como é óbvio, que a mesma seja implicada neste crime.

Não se pense, contudo, que Suzana Garcia ignora que, em Portugal, há também racismo, como teve a dignidade de reconhecer: “Nós temos incidentes racistas em Portugal, como o mundo inteiro tem, mas não somos um povo racista. De tal sorte que até temos uma deputada vinda da Guiné e não temos nenhum português, branco, na Assembleia da República da Guiné! Ela é negra e foi eleita por quem? Pelos portugueses, não caiu lá por obra e graça do Espírito Santo, foi eleita por nós! A nossa ministra da Justiça é negra e o nosso primeiro-ministro não é branco. Isso diz o quê? Diz que nós somos um povo integracionista! Há mais algum primeiro-ministro, na Europa, negro, ou de ascendência indiana?!”.

Faça-se justiça!

A propósito destas duas mortes, o historiador Rui Tavares escreveu, no Público de 13-1-2020: “A náusea que estas mortes injustas nos provocam pode fazer-nos esquecer de que há uma resposta para as mortes injustas. Não é uma resposta boa, é uma resposta necessária. Não é uma resposta que nos traga de volta os mortos, mas é a resposta que gostaríamos de ter se tivéssemos sido nós as vítimas: fazer justiça. Fazer justiça significa saber mais, saber tudo, sobre as circunstâncias em que estas mortes ocorreram. Identificar, julgar, e condenar os culpados, quando os haja. […] Pedro e Luís Giovani já não voltam. Mas se soubessem que iriam partir, quereriam que lhes viéssemos a fazer justiça. É o que lhes podemos dar. É o mínimo que lhes devemos”.

Quando soube dos homicídios do Luís Giovani e do Pedro Fonseca, senti a mesma dor e revolta que sofri com a morte do Luís Manuel. Não sentir dó pelas suas mortes, ou não as chorar, não seria sinal de carácter, mas de insensibilidade, senão mesmo de animalidade. Só os brutos e as bestas não riem, nem choram. Jesus chorou a morte do seu amigo Lázaro e não teve vergonha de o fazer em público, ele que expulsara do templo, a golpes de azorrague, os vendilhões!

Não há palavras para a dor dos pais do Luís Giovani Rodrigues e do Pedro Fonseca. Como muito bem disse Suzana Garcia, “a dor de uma mãe negra não está acima da dor de uma mãe branca”, nem vice-versa. “A anatomia do nojo destas duas vítimas é bem diferente”, como certeiramente sublinhou Alexandre Camões Barbosa. Com efeito, na crónica de Luís Aguiar-Conraria, Justiça para Giovani, que ocupa toda a página 6 do Público de 15-1-2020, não se faz uma única referência ao assassinato de Pedro Fonseca, muito embora, na edição de 17-1-2020 do mesmo jornal, José Ribeiro e Castro recorde-o, no seu excelente #JustiçaParaGiovani.

Tanto dá a cor, a raça, ou a etnia de um assassino: o ser branco ou preto não o faz mais, nem menos, culpado. Tanto dá a cor da vítima, porque a morte não distingue cores, nem raças, nem etnias. Afinal, de que cor é a dor?!

As vítimas destes crimes hediondos merecem as nossas lágrimas, mas também reclamam, como muito justamente recordou Rui Tavares, que se lhes faça justiça: “É o que lhes podemos dar. É o mínimo que lhes devemos”.  Nem mais.

Paz às suas almas.