Já temos data: 20 de Janeiro de 2025! Segundo o calendário eleitoral dos EUA, é o dia em que Donald Trump vai jurar solenemente que a meia dúzia de gatos pingados que estarão a vê-lo ser empossado Presidente são, na realidade, uma multidão histórica. Por mais imprevisível que Trump seja, julgo que não arrisco muito ao prever que, como da primeira vez, vai negar a realidade em frente dos seus olhos e garantir que a sua tomada de posse é a mais concorrida de sempre.

Compreensivelmente, é o tipo de aldrabice que, de tão óbvia, torna muito desconfortável a posição dos seus defensores. Sobretudo dos que conseguem comparar duas imagens sem se babarem. Já em relação aos seus adversários, contribui para a incredulidade com que encaram a escolha, por parte dos seus compatriotas, de um manifesto mitómano. Convenhamos que se trata de um tipo de falsificação da realidade com que é difícil lidar.

A bem da reconciliação nacional, talvez fosse boa ideia Donald Trump tentar aproximar-se dos opositores. Fazer algumas concessões para acomodar os valores dos democratas. Se, após a tomada de posse, em vez de dizer “estiveram milhões de pessoas a ver-me” disser antes “estiveram milhões de pessoas trans a ver-me”, talvez a intrujice seja mais fácil de engolir, uma vez que é sabido que os democratas não se permitem questionar pessoas trans. Por exemplo, para um democrata é inadmissível Trump estar a jantar com JD Vance e dizer “estamos aqui 170 gajos à mesa”, mas já é aceitável afirmar “estamos aqui um gajo e uma senhora à mesa. Com a barba mais bonita que já vi numa mulher”. É que o problema dos democratas não é a negação da realidade, é o tipo de realidade que se está a negar. Em número? Intolerável. Em género? Compreensível e até encorajada. Ora, não é justo respeitar os sentimentos de uma pessoa que se identifica com o sexo oposto, mas não perguntar a um apoiante de Trump “quantas pessoas se sente?”

Esta semana, no programa da CNN NeswNight, um comentador ameaçou abandonar a discussão depois do colega de painel dizer, a propósito deste tema, que há famílias que não gostam da ideia de haver rapazes no desporto de raparigas. O rabino Jay Michaelson não admite que se diga que um rapaz que se considera uma rapariga não é realmente uma rapariga. Fere-lhe a alma. Repare-se, Michaelson não discorda de Shermichael Singleton. Para discordar é preciso acolher os argumentos contrários e rebatê-los com outros. O que Michaelson faz é abrenunciar com especial aversão a análise da realidade em que, olhando-se para um rapaz, afirma-se que não é uma rapariga. Com o mesmo grau de dissonância histérica com que Trump, imune à lógica das evidências, garante que as suas multidões são as maiores de sempre.

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Apesar de altamente improvável, ainda há esperança de que Trump mude. Que tenha uma epifania e, de repente, altere a sua percepção impostora da realidade, passando a reconhecer os factos como eles são, sem o impulso de os falsificar. Tenhamos fé. Não é habitual, principalmente na política americana ao mais alto nível, onde reconhecer o erro é tido como uma fraqueza. Mas acontece. Principalmente, se a adulteração da realidade é de tal modo exagerada que não a corrigir é absurdo. Trump pode fazê-lo. Basta seguir a lição os seus adversários.

O Partido Democrata andou os últimos anos a garantir que Joe Biden não estava velho, era apenas um moço com pele que parecia mesmo enrugada, dedos que pareciam mesmo artríticos e dificuldades da fala que pareciam mesmo dementes. Senil? Pelo contrário, ágil como um adolescente! As sestas a meio de reuniões eram introspecção, as confusões com nomes de pessoas e países eram folguedo – e dizer o contrário era discurso de ódio. Por cada aparição pública que confirmava a decadência, havia sete artigos, 12 reportagens e centenas de posts nas redes sociais a refutá-la, fundamentados numa prova científica cabal: a vontade muito grande de que não fosse verdade. A idade é só um número, diziam a sorrir. E o número de Biden, na cabeça dos seus correligionários, era o π. Na medida em que pode durar para sempre.

Só que, da mesma forma que pessoas que já tenham estado num estádio cheio sabem avaliar uma multidão, gente que teve avós sabe avaliar um idoso. E o inevitável aconteceu. Subitamente, os democratas tiveram de admitir a realidade do seu candidato ter competência para capitanear a equipa de petanca do lar de idosos, mas não o país mais poderoso do mundo. Esperemos que aconteça o mesmo a Trump, que aceite que não é apoiado por pessoas a dobrar. Seguindo o exemplo dos democratas, que aceitaram não apoiar uma pessoa dobrada.