Esta foi a semana em que a Espanha e a Irlanda formalmente reconheceram a Palestina como algo que manifestamente (e infelizmente) não é. Reconhecer a Palestina como um Estado plenamente independente, em vez de uma região ocupada com autonomia limitada, passou a ser apresentado como um novo imperativo moral por uma série de correntes políticas ruidosas, aproveitando a natural simpatia pela tragédia dos civis em Gaza. Há até quem não tenha problemas em criticar uma Alemanha empenhada em reparar o genocídio nazi dos judeus, para melhor argumentar com a pressão moral do resto do Mundo. Suponho que seja a pressão de países tão credíveis como a Turquia de Erdogan, que nos intervalos de reprimir os curdos, se entretém a dar lições sobre a autodeterminação da Palestina. Ou então da China de Xi Jinping que se vai solidarizando com a Palestina enquanto detém e reeduca milhões de muçulmanos uigures com o argumento do combate ao terrorismo, e ameaça com a guerra económica qualquer país que se atreva a receber o Dalai Lama ou a reconhecer Taiwan.

O reconhecimento da Palestina como Estado muda alguma coisa? 

Não muda. Se mudasse, já tinha mudado, afinal, já há 145 países a reconhecer a Palestina como Estado soberano sem que ele realmente exista. A decisão da Espanha e companhia acabou com a guerra? O Hamas, inimigo jurado da paz, já foi derrotado? Os civis de Gaza já estão a salvo? Os reféns, vivos e torturados, ou mortos e cadáveres ocultados, já foram libertados? Netanyahu e os partidos extremistas já foram afastado do governo de Israel? Não vejo nenhuns sinais disso.

A propósito de declarações vazias: Bashar al-Asad já deixou Damasco? Nicolás Maduro já abandonou Caracas? Não?! Mas os europeus retiraram-lhes o reconhecimento diplomático durante anos! Na época deixei claro que de nada valiam declarações grandiloquentes desse tipo, sem consequências reais. A respeito do imperativo moral da coerência constato que: muitos dos que agora gritam pelo reconhecimento da Palestina defenderam o direito da dinastia Asad a se defender contra alegados terroristas jiadistas com bombardeamentos indiscriminados de áreas civis, nomeadamente com mísseis russos disparados de aviões russos por pilotos russos. Outros dos que clamam agora pelo reconhecimento de uma Palestina independente consideraram contraproducente ignorarmos que Maduro é de facto o presidente da Venezuela.

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Se bastassem declarações de fora para resolver este conflito, ele nunca teria existido. A solução dos dois Estados não é uma invenção recente. Foi adotada pela resolução 181 da Assembleia Geral da ONU, a 29 de novembro de 1947. Israel aceitou. A maioria dos Estados europeus aceitaram. Durante décadas os países árabes e os líderes palestinianos recusaram. Aliás, ainda hoje há 28 países que exigem o reconhecimento da Palestina, mas se recusam a reconhecer Israel. Ainda esta semana o Guia Supremo do Irão, o aiatola Khamenei, encontrou-se com o líder do Hamas no exílio, e declarou publicamente que estava para breve o objetivo partilhado da eliminação de Israel.

E depois? 

Aparentemente vivemos em tempos em que é preciso dizer que não devemos reconhecer Estados que não existem porque achamos que eles deviam existir. Se essa fosse a nova regra, em nome da tal coerência, não poderíamos ficar pela Palestina. Que tal o Curdistão? Estou certo de que a Turquia, o Irão etc. iriam reagir muito bem. Então e o Tibete? Estou seguro de que a China iria responder com muita diplomacia. Aliás, agora me lembro, a Espanha já reconheceu o Kosovo? Coerência? O Mundo é demasiado complexo e perigoso para total coerência. Alguma fidelidade a princípios fundamentais já não é nada mau. Como a Europa faz, por exemplo, reduzindo a ajudas e recusando o reconhecimento a regimes golpista, pagando um preço por isso em influência e acesso a recursos. Mas não se defende eficazmente princípios ignorando a realidade de obstáculos intransponíveis ou gestos contraproducentes. Por isso, nem sequer reconhecemos Estados que já existem de facto como a Somalilândia ou Taiwan.

Ninguém de boa fé questionará que Taiwan é de facto um Estado eficaz com um governo livremente escolhido pela população dessa ilha formosa. Algo que não se pode dizer do regime comunista que reprime a China continental, desde 1949, com mão de ferro, agora também virtual. Esta semana condenou 14 democratas em Hong Kong pelo crime de organizar uma eleição primária! Apesar disso não reconhecemos Taiwan, nem como independente, nem como o governo da China. E fazemos bem. Porque isso não ajudaria a resolver o conflito, pelo contrário. A China comunista não tem razão em muita coisa, mas tem alguma quando diz que o governo que existe em Taiwan é o resultado da guerra civil chinesa. Isso não significa dar carta branca a Pequim para fazer o que quiser. E o mesmo se aplica a Israel, apesar de não reconhecermos um inexistente Estado independente da Palestina. Em todo o caso, se a Espanha e a Irlanda querem dar lições de coerência e coragem diplomática têm aqui um bom teste. Ou no caso de Taiwan já será preciso ponderar bem os efeitos e custos do reconhecimento?

O que podemos fazer?

Os mesmo que agora gritam pelo reconhecimento da Palestina, a seguir vão gritar que foi um gesto vazio. E terão razão. Já damos um estatuto, um apoio financeiro e um reconhecimento excecionais à Autoridade Palestiniana. E podemos fazer mais, sem cair no disparate. O governo português, para já, parece estar bem, e bem acompanhado pela maioria dos Estados Membros da União Europeia. Apostados em reforçar a Autoridade Palestiniana através de um esforço de renovação e reforma. Apostados em apoiar uma alternativa indispensável ao Hamas. Apostados em facilitar um acordo mais amplo entre Estados árabes e Israel contra o dito Eixo da Resistência do Irão que visa promover as ambições desse regime teocrático à custa da paz na região. Portugal e o resto da Europa devem contribuir para uma saída política para a guerra, que o atual líder do governo de Israel, Netanyahu, irresponsavelmente recusa, como testemunham, alarmadas, as chefias militares israelitas e vários ministros, inclusive o da Defesa, Yoav Galant.

Uma guerra irregular mais ainda do que outros tipos de conflito não se ganha apenas com êxitos militares, tem de existir uma saída política. E ela não pode esperar pelo fim duma campanha que se arrisca sempre a ser prolongada quando o inimigo é clandestino e se esconde entre civis. É a minha opinião, mas, sobretudo, é a minha análise e de muitos outros colegas que estudaram este tipo de conflitos. Israel precisa de cortar o apoio externo do Hamas, mas também o seu apoio interno. Para isso precisa de poder apresentar o Hamas como o grande obstáculo à paz e prosperidade dos palestinianos, promovendo alternativas credíveis. Netanyahu recusa-se a fazê-lo. Os aliados ocidentais de Israel devem deixar claro que isso terá consequências. Poderão até ameaçar com sanções, desde logo visando eficazmente os colonatos.

Nada é simples e garantido neste conflito, exceto que ele não será resolvido por uma simples imposição externa. Esperar isso dum Diktat europeu é mesmo revelar uma mentalidade neocolonial de quem não percebe o Mundo atual. Em suma, a Europa reconhecer um Estado independente da Palestina que não existe, não resolve nada. É o equivalente diplomático da caça aos gambozinos. E quando o alvo não existe, falhar é garantido. Tendo em conta que alguns líderes europeus parecem ter medo da própria sombra e preferem palavras vazias a ações eficazes não me espantaria, no entanto, que a moda pegasse. Tal só acrescentaria ao descrédito global da Europa sem nada adiantar aos civis palestinianos e israelitas apanhados no fogo cruzado deste conflito.