O mundo tem sido de certa forma indiferente para com o drama dos milhões de refugiados, que fugindo de perseguições diversas, conflitos armados ou violações sistemáticas aos direitos humanos, buscam territórios seguros onde possam ter a efetiva proteção internacional que os instrumentos internacionais proclamam.
O ano que agora cessou avolumou o sofrimento e exponenciou as deslocações internas desse mar que ondula em busca de esperança, a qual muitas vezes naufraga no Mediterrâneo ou esbarra contra os muros de silêncio de uma Europa que reconhece agora que tem falhado e que vê no seu pacto para as migrações “um recomeço no domínio das migrações” baseado “numa abordagem abrangente de gestão da migração”.
É urgente uma resposta efetiva, conjunta e solidária.
Apesar do debate sobre este problema em sucessivas cimeiras europeias, as soluções encontradas não têm produzido respostas efetivas, seja através de programas de recolocação permanente de refugiados, de funcionamento eficaz dos hotspots, ou de apoios efetivos de toda a União Europeia aos países de entrada e à criação de passagem segura para quem busca proteção internacional no espaço europeu.
O facto de a Europa ter reconhecido que falhou, é de per si um avanço, mas é essencial que os novos instrumentos legislativos em preparação, que irão substituir o Regulamento de Dublin e relançam o Sistema Europeu Comum de Asilo (SECA) através de um quadro comum, respondam de forma efetiva às fragilidades e conflitos negativos de competências evidenciadas nos últimos anos.
Segundo o ACNUR, o ano de 2020 foi particularmente mais difícil para os refugiados, devido aos conflitos novos e pré-existentes e à pandemia do coronavírus. Em março, o secretário-geral da ONU, António Guterres, pediu aos líderes mundiais um cessar-fogo global enquanto o mundo lutava contra a Covid-19, mas o apelo foi ignorado por diversos países.
Temos, hoje, mais de 80 milhões de deslocados internos e desse total, pelo menos 30 milhões são crianças e adolescentes.
A ONU divulgou ainda no final do ano outro relatório, o Panorama Humanitário Mundial, que aponta que 235 milhões de pessoas – 1 a cada 33 no planeta – precisarão de algum tipo de ajuda humanitária em 2021.
O relatório apresenta um cenário preocupante sobre as necessidades provocadas por conflitos, deslocações internas, desastres naturais e pelas mudanças climáticas, mas atribui à Covid-19 a maior responsabilidade pelo aumento da demanda humanitária.
A pandemia agravou igualmente as condições dos refugiados nos campos onde se encontram, suspendeu procedimentos e o incêndio do campo de Moria, na Grécia, veio revelar a falta de segurança e dignidade com que a Europa acolhe quem busca no solo europeu o respeito pelos mais elementares direitos humanos.
Portugal, que assumiu no dia 1 de janeiro a Presidência da União Europeia sob a égide “tempo de agir“ e centrado na Europa Social, terá como um dos dossiers mais relevantes o das Migrações, onde se incluem os desenvolvimentos do Sistema Europeu Comum de Asilo.
A Comissão propõe um novo Pacto sobre a Migração e o Asilo, que engloba os diversos elementos necessários para uma abordagem europeia abrangente da migração. O pacto define procedimentos que se querem melhorados e mais rápidos em todo o sistema de asilo e de migração, e visa estabelecer um equilíbrio entre os princípios da partilha equitativa de responsabilidade e da solidariedade.
Há muito que a União Europeia necessitava de rever o seu sistema de asilo, mas teme-se que na busca de gerar consensos, a Comissão Europeia possa ceder àqueles que sempre se colocaram fora de qualquer sistema de partilha solidária da responsabilidade de acolher aqueles que, fugindo à guerra e à perseguição, procuram na Europa, apenas e só, uma oportunidade de vida com dignidade e segurança.
Poderá ser complexo circunscrever e reduzir a solidariedade a um sistema de quotas, que podem ser cumpridas entre a abertura ao acolhimento por recolocação e o patrocínio de processos de retorno, porquanto podemos continuar a ter desfechos negativos em termos da divisão entre países disponíveis para acolher e aqueles que não estão disponíveis e que só se disponibilizarão para suportar os processos de retorno.
Portugal, que tem participado ativa e construtivamente no esforço europeu de acolhimento aos refugiados, no sentido da construção de uma política europeia de asilo comum, assente nos princípios da responsabilidade e solidariedade, no respeito pela dignidade humana, no combate ao tráfico de seres humanos e ao auxílio à imigração ilegal, tem agora a oportunidade de moldar novos caminhos na defesa de um sistema de asilo justo, equitativo e de procedimentos comuns que se pautem por elevados standards de proteção.
Sublinhe-se que Portugal foi o sexto país da União Europeia que mais refugiados acolheu ao abrigo do Programa de Recolocação, e tem respondido sempre de forma positiva a todas as situações de emergência que têm sido colocadas, em consequência dos resgates de migrantes no Mediterrâneo por navios humanitários. Portugal faz parte, aliás, do grupo de Estados-membros que deu mais cobertura à concretização dos seus compromissos políticos (Relatório sobre Entrada, Acolhimento e Integração de requerentes e beneficiários de Proteção Internacional em Portugal, Observatório das Migrações/ACM, 2020).
O mesmo compromisso tem ocorrido em relação aos menores não acompanhados, onde manifestámos disponibilidade junto da Comissão Europeia para a recolocação até 500 menores não acompanhados, encontrando-se já em Portugal mais de 70 menores. De acordo com os dados da Comissão Europeia de finais de novembro, Portugal é o quarto Estado-membro que mais menores não acompanhados acolheu, a seguir à Alemanha, França e Finlândia.
O relatório anual anteriormente referido (resultante de resolução da Assembleia da República, em que me orgulho de ter estado envolvida) constitui um instrumento que nos confere uma abordagem compreensiva do fenómeno, fornece abundante informação quantitativa e qualitativa, visando uma política pública de asilo mais informada e esclarecida.
Deste relatório resultam diversos desafios associados ao acolhimento e integração de requerentes e beneficiários de proteção internacional e a recomendação da adoção de um novo modelo de acolhimento, que já está aliás em marcha, que busca uma melhor uniformização, uma coordenação mais eficaz em matéria de asilo e, a montante, um maior esforço na agilidade dos procedimentos e duração dos processos.
A revisão do modelo de acolhimento que está prestes a ser concluída, tem três eixos que destacamos e que se prendem com a criação de um grupo operativo único para requerentes de asilo e refugiados, o aperfeiçoamento do acolhimento de menores não acompanhados e o modelo de autonomização destas pessoas, que se pretende mais curto do que os atuais 18 meses.
Portugal sempre soube projetar uma filosofia clara na ordem internacional, promotora da paz, defensora dos direitos humanos e da democracia e que temos de continuar a aprofundar. Edificámos uma política ativa de solidariedade na reinstalação e recolocação de refugiados no âmbito da União Europeia, que todas as instâncias reconhecem, e sabemos que se prosseguirá nesse caminho.
Tal como cantava Carlos do Carmo que nos deixou mais sós no primeiro dia do novo ano “…existe a esperança acesa atrás do muro” e é essa esperança que a Europa tem que cumprir, ao afirmar uma nova era no capítulo das migrações e do direito de asilo, em especial, porque num pedido de asilo existe sempre “um verso em branco à espera do futuro”.
Que Portugal possa inspirar todos os parceiros europeus a escreverem com suplemento de alma esse verso em branco.