Amanhã, as crianças regressam à escola. Muitas delas, indo do quarto até à sala. A maioria, porventura, regressam à escola sem sair do quarto. Tudo depois de umas férias “à pressa”, em consequência do cataclismo que tem sido esta pandemia. Que nos ajudaram a perceber que, diante do expansionismo de um vírus, a escola não é – infelizmente – um lugar seguro. Por mais que os directores de escola e os professores tenham feito tudo o que podiam para que nada ficasse “fora de controlo”. Mas num tempo de cadeias de transmissão desreguladas não haverá, simplesmente, lugares seguros. Para além do confinamento a que estamos “obrigados”.
Nestes últimos quinze dias, muitas crianças e adolescentes estiveram em férias, fechados em casa. O que, convenhamos, num tempo de teletrabalho, chega a ser quase pior que tê-los “em aulas”. Muitos outros, tiveram as aulas mais ou menos habituais convertidas em “aulas de apoio”. E outros, ainda, tiveram seis e sete horas de aulas por dia, com direito a terem, a seguir, mais duas ou três horas de trabalho para prepararem apresentações, testes e trabalhos de casa. Perguntar-se-á se é legítimo que tenha havido escolas que, aparentemente, contornaram uma regra que seria para todos os estudantes, continuando a ter uma actividade lectiva, em tempo de férias. É legítimo que as escolas entendam ter os procedimentos que julguem correctos; para mais, com o assentimento dos pais. O que não se entende é o papel da “entidade reguladora” quando, define uma regra e, a seguir, condescende que ela possa não ser para se cumprir. Aliás, depois do que se passou nestas férias, passará a ser “legítimo” – presume-se – que quaisquer escolas possam levar por diante um regime de aulas que não se adeque ao calendário lectivo. Dando origem a uma “autonomia escolar” cujas coordenadas serão muito “escorregadias”. Ou não será?
É claro que se compreende que os pais, as escolas e os professores se preocupem, imensamente, com a turbulência que têm sido estes dois anos lectivos. Mas – a par das discrepâncias que existem entre o número de alunos por turma em tempos de covid, dos desencontros dos horários das aulas (que nem sempre são possíveis em todas as escolas), das janelas abertas e das mantinhas na sala de aula, e dos trezentos mil computadores em falta – estas férias acentuaram, ainda mais, as discrepâncias que a escola, desde Março passado, trouxe a muitos alunos. Fazendo com que o direito à educação se tenha vindo a tornar, de forma fulgurante, numa igualdade de direitos enviesada por desigualdades significativas.
Pergunta-se: mas será absurdo que os pais e as escolas entendam levar por diante um plano de estudos “de emergência”, mesmo nas férias, que vá no sentido de proteger as consequências que esta calamidade está a ter na educação? Não. O que não é justo é que não haja da “entidade reguladora” um plano mais generalizado, que se conheça, que vá no sentido de colmatar as consequências alarmantes da pandemia na formação escolar dos nossos filhos, com discrepâncias que correm o risco de se acentuar “todos os dias”.
Acresce que, a partir de amanhã, voltaremos à “telescola” e às aulas à distância. E voltaremos com muitas crianças que estiveram sem aulas, nas férias, a permanecerem sem aulas, no regresso à escola (mesmo que algumas, em função do seu estatuto de carência, possam ter aulas presenciais; resta saber em que condições e com que professores). E voltaremos sem regras uniformes em relação aos tempos, aos conteúdos e ao formato das aulas. E com grandes hipóteses dos alunos com necessidades especiais verem as suas necessidades agravadas e verem uma perspectiva inclusiva da sua educação a tornar-se, francamente, comprometida. E sem uma ponderação clara em relação ao modo como a desigualdade de acesso à rede móvel, fora dos grandes centros (que depende de factores climatéricos, inclusive), poder, ela também, interferir nos resultados escolares. Havendo quem assinale que um Mbit por segundo na velocidade da internet corresponde a subidas claras dos resultados escolares. E voltará a haver o perigo de se perder o rasto de muitos alunos, como aconteceu na primeira quarentena. E de voltar a haver crianças pequenas a permanecerem em casa, sozinhas, como já aconteceu. E com mais de 25% das crianças até aos 12 anos a retomarem o ensino à distância em casas em que entra água. E com muitas destas crianças a não terem, sequer, uma mesa para trabalharem. Nem refeições adequadas. E a nem sempre encontrarem nos seus familiares directos o apoio de que precisam e que a escola, num regime destes, talvez não lhes consiga dar. Que, por outro lado, quando não estão em teletrabalho, e têm de permanecer em casa para lhes darem apoio, recebem, unicamente, 66% da sua remuneração-base. O que faz com que este regresso à escola penalize mais as famílias carenciadas. E, mais uma vez, sobretudo, as mulheres.
Mas para além da pandemia nos ter recordado que há uma escola de crianças desfavorecidas que se acentuou imensamente, há, depois, os custos de uma segunda quarentena para todos os estudantes que não estão, hoje, tão disponíveis para este formato de ensino como terão estado na primeira. E a labilidade da sua atenção diante de cargas horárias muito acentuadas de aulas à distância, muitas vezes pouco adequadas à comunicação digital, que nos obriga a ponderar sobre a relação custo/benefício de tudo o que está a acontecer. Não se trata, pois, de se ligar ou de se desligar a câmara, durante as aulas. Mas de haver ou não haver câmara. E de os ter “ligados” ou “desligados” a um processo educativo onde a distância prevalece e onde a dimensão confinada da sua aprendizagem em nada os ajuda.
Em resumo, não é fácil termos pais e filhos em teletrabalho. Não é fácil dar e ter aulas à distância. E não é fácil a forma como a escola convive com os professores diante do ensino à distância. Muitos deles, em teletrabalho. Muitos deles que não têm recursos informáticos que possam dividir entre a escola em que trabalham e os seus filhos, em ensino à distância. E, quando a solução passa por realizarem o teletrabalho a partir das escolas, por mais que o teletrabalho seja obrigatório, a maioria acaba por ter ao seu dispor material informático obsoleto. Que, em muitas circunstâncias, não viabiliza o ensino à distância.
É verdade que vivemos num país com recursos muito limitados. E que a pandemia pulverizou esses recursos. Num país cujo PIB caiu, de forma exuberante. E em que muito do planeamento da educação terá sido “atropelado”. Onde, em consequência dela, se terá dado um recuo de quase um ano na esperança de vida, à nascença, em 2020. Mas se só de falarmos de escola à distância já nos deve assustar – escola e distância não rimam na perfeição – quatro meses (ou mais), porventura, em dois anos lectivos, com os alunos afastados fisicamente da escola, e com tantos constragimentos a preocuparem-nos, deve obrigar-nos a pensar nos custos disto tudo para a educação dos nossos filhos. Não foi o Governo que inventou a pandemia; mas a forma como ela entrou pela escola e a comprometeu (apesar de tudo aquilo com o que que os professores a tentaram minimizar) obriga-nos a ver estas outras consequências como um problema, muito grave. De todos! E exige que estejamos, já, a planear “o dia depois de amanhã”. A perguntar o que pretendemos fazer, no futuro, com a escola e com o ensino à distância. De que forma pode ele ajudar a contornar assimetrias escolares. E a perguntar, ainda, qual o plano para que o sistema educativo corrija as desigualdades que a pandemia intensificou. Regressar à escola sem se sair do quarto será, digamos assim, uma solução de emergência que a escola coloca ao dispor de todos. E aplaude-se que o faça; claro. Mas no meio de tantos efeitos colaterais da pandemia na educação, com o auxílio daquilo que esta catástrofe nos trouxe e ajudou a esclarecer, é urgente que se reinvente aquilo que queremos da escola. E é urgente que a escola volte, o mais possível, a ser igual. E para todos!