Sem ser sequer necessário falar do conteúdo, já o mero título do artigo que há dias Bárbara Reis publicou no Público – Os Exames de Filosofia são Zero Filosóficos – era de índole a suscitar alvoroço entre os professores de filosofia. Era e suscitou. As repercussões distribuíram-se pelo mais amplo espectro, desde o aplauso ao melindre. E todos tinham uma parte de razão. É evidente que nos temos de questionar sobre um sistema educativo em que se admite como natural que a cultura humanística, histórica e literária se tenha reduzido a tal ponto que, no final do Ensino Secundário, a redacção de um ensaio seja tarefa demasiado complexa para muitos dos estudantes avaliados. É por isso que as questões de resposta longa têm pouco peso relativo nos Exames: a sua função é apenas a de diferenciar dos estudantes médios os estudantes excelentes que consigam realizá-la. Mas é também claro que as várias tipologias de resposta do Exame – escolha múltipla, resposta curta, resposta longa – não decorrem da arbitrariedade de quem o elabora. É por isso que, no caso do Exame Nacional de Filosofia, mais do que na sua forma, seria importante reparar no conteúdo (forma e conteúdo articulam-se inevitavelmente) e na concepção que lhe está subjacente sobre o que é aprender filosofia, pensar filosoficamente e ter cultura filosófica.

O problema essencial do Exame de Filosofia não está tanto na sua estrutura, mas em ser o veículo de uma compreensão muito limitada e pobre do que é a filosofia. Para sua caracterização basta evocar, como exemplo, uma das questões de escolha múltipla nele presente em 2007, pouco depois de ter sido reintroduzido. A questão pedia aos estudantes para identificarem em qual de quatro hipóteses era formulado um problema filosófico. A resposta certa seria «será que há regras morais absolutas?», mas uma das hipóteses que os alunos deveriam rejeitar perguntava «por que razão há pessoas que se suicidam?». Tal questão era, bem entendido, particularmente embaraçante. Era-o porque mostrava que o seu autor desconhecia, por exemplo, o modo como Albert Camus começava o seu livro O Mito de Sísifo: «Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: o suicídio». Neste quadro, portanto, sugeria-se implicitamente que a obra de Camus não era filosofia. Do mesmo modo que, na mesma linha de pensamento e levando-a ao absurdo, se poderia sugerir o mesmo da obra de um Hegel ou de um Kierkegaard, de um Nietzsche ou de um Heidegger, etc, etc.

Mas por que razão, tendo em conta o pressuposto pelo Exame, a questão invocada por Camus no início do seu livro não seria filosófica? Porque, no entender do autor da pergunta do Exame, a filosofia se deveria reduzir à formulação de «teses» discutidas com recurso a argumentos e exercícios de lógica formal. Tratava-se, pois, de sugerir implicitamente a ideia de que o pensamento filosófico é puramente unívoco e de que os grandes filósofos podem ser mencionados apenas como ilustrações de «teses», as quais, por seu lado, podem ser contrastadas como posições «puras» que, para a sua compreensão, prescindem da referência ao seu contexto hermenêutico. Ou seja, pressupunha-se sem mais que o pensar filosófico se poderia confundir com formalização argumentativa, sem que para tal contasse, por exemplo, a hermenêutica ou a histórica dos conceitos.

O Exame Nacional de Filosofia – e é esse o seu problema essencial – tornou-se, de bom grado ou a contragosto, num instrumento para a introdução no Ensino Secundário desta visão muito pobre sobre a filosofia. Foi assim no decurso de uma história que passou da sua extinção à sua reintrodução em 2006. O Exame de Filosofia foi extinto quando se decidiu que os Exames necessários à conclusão do Ensino Secundário seriam reduzidos a quatro, dois no 11º ano e dois no 12º. Nessa época o Governo decidiu também que, dos quatro exames, três incidiriam em disciplinas da formação específica, restringindo-se a um o Exame ligado à formação geral dos estudantes. Entre as quatro disciplinas da formação geral (Português, Filosofia, Educação Física e Língua Estrangeira) foi então escolhida a disciplina de Português para, ao fim dos três anos do ensino secundário, ser objecto de Exame. Por essa razão, a disciplina de Filosofia deixaria de ter avaliação externa. Mesmo os Cursos universitários de Filosofia tiveram então de recorrer a outros Exames como critério de acesso: Exame de Português ou de História, por exemplo.

Em decorrência disso, o repúdio pela extinção do Exame de Filosofia causou uma quase unanimidade entre os professores de filosofia e as suas associações, tanto no ensino secundário quanto universitário. E as razões eram muito válidas. Em primeiro lugar, temia-se que a inexistência de uma componente de avaliação externa retirasse uma imprescindível regulação das práticas lectivas e qualidade das aprendizagens. Segundo, gerou-se o sentimento de que, não havendo Exame, a disciplina de Filosofia seria desvalorizada ou mesmo tida por irrelevante. No fim, como efeito da mobilização geral em defesa do Exame, o Governo alterou a decisão inicial e resolveu repô-lo: dos quatro exames necessários para concluírem os seus estudos secundários, os estudantes passaram a poder optar, no 11º ano, entre os dois exames da formação específica ou, em alternativa, um exame da formação específica e o Exame de Filosofia.

No entanto, a reintrodução do Exame de Filosofia deveria ter sido o começo de um processo, não o seu termo. Surgiam com ela problemas novos que, no entanto, eram previsíveis e deviam ter sido abordados. Não o foram. E tudo decorreu, a partir de então, como uma bola de neve. As práticas lectivas canalizaram-se quase exclusivamente para a preparação do Exame. Por serem mais fáceis de avaliar externamente, sobrevalorizaram-se os exercícios de lógica formal e inculcou-se nos estudantes a perspectiva de que a filosofia se reduz à formulação de argumentos sob o espartilho da formalização. A cultura filosófica foi reduzida à etiquetagem de «teses»: «libertismo», «consequencialismo», «determinismo moderado» ou «radical» e outros «ismos» semelhantes. Os manuais adaptaram-se, incorporando a nova linguagem. A definição das aprendizagens essenciais em filosofia, mais tarde, reproduziu e reforçou o processo, mencionando escassos autores apenas para ilustração destes «ismos». E tudo isso num processo automático que ninguém parecia (ou parece hoje) poder parar. Neste contexto, interrogar-se sobre a qualidade do Exame de Filosofia pode, pelo menos, ter o mérito de repensá-lo. Mas é preciso repensá-lo com consciência de que o Exame não é um fim mas um meio, de que as suas implicações vão além da sua forma e de que é o próprio sentido da Filosofia no Ensino Secundário que hoje se torna urgente defender e redefinir.

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