Se o grande propósito do presidente-eleito Joe Biden é, como apregoou no seu discurso de vitória ontem à noite, «restaurar a alma da América», temo que vá ter mais problemas do que soluções, a começar pela pandemia, cuja negação por parte do presidente cessante terá provavelmente valido a este a derrota eleitoral. Se é nisso e noutras frases-feitas que Biden acredita, sem nada dizer com efectivo conteúdo político, muito menos com sentido internacional, estamos bem arranjados. Veremos o que dirá no dia da tomada de posse além de anunciar o regresso dos Estados Unidos ao «Acordo Ambiental» de 2015, cujos efeitos porém pouco se notam.

Com efeito, uma vitória como esta, que esteve longe de ser esmagadora – apenas 3,5% de diferença entre os dois candidatos num total inédito de 160 milhões de votos – vai carecer de muito mais do que «restaurar a alma». Desde logo, falta quem tenha uma visão do que pretende fazer o Partido Democrata fazer em relação à radical viragem política nacional e internacional promovida durante quatro anos por Trump. Depois de este ser removido da Casa Branca, coisa que não vai ser fácil, Biden terá de acabar urgentemente com o caos pandémico deixado por Trump. Acontece que a pandemia remete imediatamente para a reforma do sistema de saúde iniciada outrora por Obama cujos colaboradores já se estão a ocupar-se do assunto para quando Biden for investido.

Com efeito, Obama é sem dúvida a principal referência, se não mesmo a cabeça, da candidatura duplamente mista dos actuais eleitos: um homem e uma mulher; um branco e uma «coloured», como é apresentada. Para medirmos a diferença entre os Estados Unidos e a Europa é que aqui há muitos governantes de «cor» mas nunca alguém se refere oficialmente a isso! Já no plano internacional, ao qual ninguém se referiu durante a campanha, pode-se pensar numa senhora – branca desta vez – como Hillary Clinton, a qual remete para os tempos do marido presidente, nos Negócios Estrangeiros por exemplo…

A ser como prevejo a sombra de Obama ,assim como a dos Clinton, sem esquecer o socialista Bernie Sanders, remetem para aquele elitismo espontâneo e condescendente dos governantes Democratas, que tudo sabem e tudo podem. Foi contra eles que Trump, seja por motivos políticos ou efectivamente psíquicos, pôs em marcha a máquina infernal do nacional-populismo, de modo tal que arrancou 70 milhões de pessoas das «classes baixas» contra 75 milhões das «classes altas», dos jovens que não votavam e, finalmente, das vítimas históricas das elites Democratas do sul (Lincoln era Republicano), ou seja, «pessoas de cor», como Kamala não é exactamente mas faz as vezes disso… O mesmo não se passa com os «latino-americanos» fugidos às ditaduras revolucionárias para ofereceram um estado como a Florida a Trump…

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Deliberadamente, segui a contagem dos votos na CNN, conhecida como a «ovelha negra» televisiva de Trump, e pude ver algo que não se vê na Europa, isto é, a racialização de qualquer tema ou, mais exactamente, o activismo anti-racista que a todo o momento nos obriga a pensar no racismo latente e, inevitavelmente, no racismo efectivo que se viveu e ainda vive no país, e cuja memória se impõe a todo o momento. Quem viu o programa, pôde verificar que isso sucedia constantemente entre os intervenientes de origem judaica e os afro-descendentes, como se diz agora, alguns deles explicitamente apresentados como membros do antigo «staff» de Obama…

Este último era sem dúvida a grande sombra que pairava sobre o despique eleitoral em curso, o que se percebe se tivermos presente que Joe Biden foi o vice de Obama durante oito anos, ao mesmo tempo que ecoava, no extremo oposto, o ódio visceral de Trump ao seu antecessor! Também podemos lembrar, porém, que Obama nunca foi um simpatizante da União Europeia nem das Nações Unidas. De resto, os Estados Unidos nunca foram politicamente internacionalistas e, apesar de o velho imperialismo ser hoje chão que já deu uvas, os Estados Unidos não abandonarão a sua posição dominante no sistema económico mundial, cuja crise internacional que vivemos também não será a dupla Biden-Kamala a alterar.

E muito menos são os novos governantes e os seus promotores e conselheiros quem terá a capacidade de acabar de forma rápida e substancial com as raízes do descontentamento mobilizado por Trump e pelos seus seguidores em nome do Partido Republicano, o qual já lhes havia valido a conquista da presidência dos Estados Unidos e agora uma derrota compensada por 70 milhões de votantes. É certo que este tipo de despique político é fácil de se dissolver mas neste caso, como em todos os países minimamente desenvolvidos, não se trata apenas de despiques ideológicos e muito menos partidários, mas sim de efectivas oposições sociais e culturais que não passam tanto pela economia como pelos modos de vida e de pensar.