Um júri composto por três mulheres e um homossexual é chamado a avaliar as candidaturas de uma pessoa não-binária, uma mulher e duas negras. Apesar de três juradas terem colocado a negra número 1 em primeiro lugar e o homossexual ter lá posto a mulher, pela média aritmética venceu a pessoa não-binário. Isto num concurso organizado pelo ministério dirigido por uma lésbica, parte de um governo chefiado por um indiano. Houve protestos por parte dos amigos da negra número 1, que responsabilizaram o racismo sistémico. Não sabemos reacções da pessoa não binária, nem da mulher, nem da negra número 2.
Repare-se que não há homens brancos cis envolvidos na questiúncula e mesmo assim a culpa é deles. Se pedissem a um misógino racista para inventar uma história que ilustrasse a superioridade do heteropatriarcado ocidental e a incapacidade das minorias se organizarem sozinhas, ele não teria grunhido melhor.
É como se os nazis destrancassem a porta do campo de concentração, dissessem aos prisioneiros “façam o que quiserem”, e os judeus, ciganos e homossexuais começassem a discutir sobre quais deviam ser os primeiros a entrar na câmara de gás.
Como cereja de absurdo no bolo do queixume, é preciso acrescentar que estes artistas anti-sistema se estão a esgatanhar para serem escolhidos como representantes portugueses na Bienal de Veneza, um dos mais prestigiados certames internacionais de arte. Para mais, realizado numa antiga potência colonial que participou no tráfico de escravos. Um evento criado por privilegiados homens brancos europeus no séc. XIX. A definição perfeita de “sistema”.
Demorei algum tempo a perceber que o charivari identitário sobre a representação portuguesa na Bienal de Veneza é, afinal, a própria representação portuguesa na Bienal de Veneza. O debate sobre a cor da pele e a orientação sexual do artista que assina a exposição é a exposição em si. Trata-se de uma instalação sobre uma instalação. Da mesma maneira que as meninas de Avignon são o emblema do cubismo, esta choradeira é a materialização do novo movimento artístico identitário em que não interessa o que o artista apresenta, mas sim como é que o artista se apresenta. A birra é a obra.
Mas a verdade é que o significado de artista tem vindo a evoluir. Antes, o artista era alguém que olhava a tela em branco e pensava: “Ah, tantas possibilidades!” Agora é alguém que pensa: “Tela em branco? Em branco? Racismo!” Filistinos como eu, quando se fala em arte contemporânea, costumam dizer: “o meu filho também fazia isto”. É um exagero próprio de brutamontes. Ou melhor, era. Agora é a realidade. É que o meu filho faz mesmo isso. Aliás, está neste momento a protagonizar uma fita igualzinha à destes artistas, por causa de um brinquedo que não lhe deram. Não percebo bem, no meio dos soluços e do ranho, mas acho que gemeu qualquer coisa sobre “Patrulha Pata” e “heteropatriarcado”.
(Esta nova forma de catalogar artistas vai poupar imenso trabalho aos biógrafos. Tenho ali o calhamaço sobre a vida do Philip Roth e parece-me que se gastaram páginas a mais. Bastava ter escrito: “judeu americano heterossexual”).
Já estou a ver críticos de arte a analisarem a obra “Escarcéu em Portugal à conta de racismo e outras discriminações” (circa 2021; vários artistas; tinta em papel-jornal), debruçados sobre os artigos do Públicwoke. (O Públicwoke é um suplemento informal do Público dedicado à temática da vitimização que tem acompanhado atentamente este caso. Os artigos publicados variam entre opiniões de vários zelotas e notícias sobre as opiniões de vários zelotas, redigidas de acordo com o jargão oficial, com termos como “lugar de fala” e “supremacia branca”. Cada seita tem os seus dogmas específicos e o jornal esforça-se por dar voz a todas). Adivinha-se polémica, já que esta não é uma obra fácil. É uma obra que interpela, que inquieta, que suscita questões. Por exemplo:
Se a não escolha da negra número 1 é considerada racismo, porque é que a não escolha da negra número 2 também não é considerada racismo? Isso não será racista, já que discrimina uma negra, mesmo que o seja em relação a outra negra? Porque não temos um pantone para comparar os tons de castanho de ambas as negras, de modo a avaliar qual é a mais oprimida? A acusação de racismo ao jurado homossexual não será homofobia? Quem acha que uma crítica à negra número 1 é racismo, não deveria achar que a crítica a um homossexual é homofobia? Pôr-se em causa a vitória de uma pessoa não-binária, não é transfobia? E se, no dia em que foi anunciado o vencedor, a pessoa não-binária se estivesse a identificar como homem? Nesse caso, o concurso não estaria eivado de todo o tipo de opressões heteropatriarcais em geral?
Mas não há dúvida de que esta situação granjeia prestígio para Portugal. Desde o manuelino que não tínhamos um estilo artístico próprio tão destacado. Da mesma forma que o manuelino é uma variação portuguesa do gótico, este movimento artístico cujo objectivo é a procura da mais pura das vítimas tem características únicas no nosso país. Aqui, a maior vítima acaba por não ser o artista. O mais explorado, o mais abusado, o mais oprimido é o contribuinte português, que é quem vai acabar por pagar esta brincadeira.
Apesar de tudo, eu percebo que é necessário haver pluralidade de vozes na cultura. As quotas têm um papel importante e deviam ter sido tidas em conta. Posso não saber muito de arte, mas a minha intuição diz-me que, neste caso, deixou-se que houvesse uma maioria, quase a roçar os 100%, de patetas.