Muito se tem dito e escrito sobre o discurso de Vladimir Putin de 9 de Maio, feito por ocasião das comemorações que assinalam o dia da vitória russa sobre a Alemanha nazi. Temo, porém, que essas análises, muito focadas numa busca hermenêutica das palavras do presidente russo que aponte uma saída conveniente para a guerra da Ucrânia, tenham passado ao lado do que me parece ser o essencial, que é perceber a racionalidade do regime de Moscovo que sucedeu ao fim do comunismo.

Na verdade, há uma tendência, frequente e errada, para ver Putin como um pragmático desprovido de quaisquer princípios e valores, de uma axiologia que anteceda e dê sentido às suas ações, considerando-o somente como um cabo de guerra imperialista, uma espécie de louco que quer repetir Adolf Hitler. Estas abordagens quedam-se pela aparência das coisas, e, por causa disso, não conseguem enquadrar o regime de Putin nos paradigmas tradicionais da ideologia e da história, ficando sempre a faltar qualquer elemento que o aproxime dos padrões convencionais, o que deixa confusos e até perturbados os seus intérpretes.

Sucede que é um erro enorme pensar que Vladimir Putin é um autocrata desprovido de uma ideia sobre o que deverá ser o seu papel e o do seu país na história e no mundo. Pelo contrário, a sua ação parece-me ter uma intencionalidade muito clara, ancorada numa filosofia e numa visão que lhe subjazem, e que, de resto, ele não se cansa de repetir. Quem o quiser perceber, ao chefe do Kremlin e ao regime que ele tem vindo a compor pacientemente há mais de vinte, terá de ir muito mais fundo e conhecer o pensamento de Aleksandr Dugin, o homem que o inspira e que é o verdadeiro ideólogo da nova Rússia.

Na verdade, independentemente da influência real que esse filósofo, escritor e ensaísta exerça sobre o Kremlin e o seu líder, acerca do que muito se tem especulado, é inquestionável que aquilo que ele pensa sobre o destino da Rússia transparece no que parece ser a orientação política atual desse imenso país. O que poderá explicar as suas movimentações geopolíticas mais recentes e, sobretudo, dar-lhes um sentido e uma intencionalidade que não podemos desprezar, porque são a antítese absoluta, conscientemente assumida, de quase tudo em que o Ocidente acredita e com que tem vivido pelo menos nos dois últimos séculos.

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O fim do Iluminismo 

Falemos, então, de Alexandr Dugin. Não é tarefa particularmente difícil caraterizar o seu pensamento e compreender a sua pessoa pública. Se o quisermos definir em poucas palavras diremos que ele é, nos nossos dias, o ícone maior do anti-Iluminismo, dessa forma de olhar o homem e o mundo que nos foi legada pelos filósofos e revolucionários europeus e americanos de setecentos e oitocentos, e que ainda hoje perdura na ordem social e política do nosso tempo ocidental. Esse património civilizacional assenta sobre os valores da pessoa humana, percebida não como conceito e entidade abstrata mas como indivíduo concreto e físico, e na universalidade dos direitos humanos de que é sujeito, na liberdade, na igualdade e na fraternidade, não obstante as subtilezas da exegese interpretativa a que poderão sujeitar-se cada um desses três controversos princípios. Mas, qualquer que seja o significado que lhes atribuamos, é inquestionável que o Iluminismo causou uma rutura com o mundo antigo e aportou-nos, melhor dizendo, trouxe o Ocidente para o que consideramos ser a sua contemporaneidade, deixando para trás um tempo antigo de privilégios e distinções congénitas, que tornavam imensamente desiguais os seres humanos, abrindo as portas às sociedades demoliberais contemporâneas. As tais sociedades e esse modo de vida de que muitos nos queixamos, mas que seríamos incapazes de trocar por outros modelos que estão mais próximos de nós do que por vezes somos levados a pensar.

Duguin é, assim, um declarado e feroz inimigo do Iluminismo e do liberalismo que nele e dele nasceu, e que foi a «primeira teoria política da modernidade». Para ele, o conceito de homem enquanto indivíduo é um erro grave, que o liberalismo transformou em dogma universal. E que, vencidos o comunismo, a «segunda teoria política da modernidade», e o fascismo, que é a terceira, a ideologia matricial da modernidade, o liberalismo, tornou-se totalitário, porque impôs uma dominância ideológica universal, que não tolera a diferença e o contraditório. Fê-lo através da “globalização”, do “livre-comércio”, da “ideologia dos direitos humanos”, numa palavra, que ele usa com repugnância, do “individualismo”. Entretanto, esse tempo do Iluminismo liberal chegou ao fim.

A quarta teoria política

Ao totalitarismo liberal, o filósofo russo contrapropõe uma pluralidade de tradições sociais, culturais e políticas, não necessariamente ocidentais e muito menos iluministas, distintas da padronização universalista que o liberalismo imprimiu à modernidade. Será uma forma adptada ao conjunto social do «Dasein»heideggeriano (o ser-em-si e no mundo), conceito que ele aliás repete exaustivamente para fundamentar as suas posições, e que traduzirá, já não somente a ideia do ser-humano em ligação e interdependência com o mundo e o tempo, mas um modo de ser próprio de cada povo em interação paritária com todos os outros povos e culturas. Aquilo a que Dugin chama a «quarta teoria política», e que propõe como superação das já mencionadas três grandes teorias políticas da modernidade – o liberalismo, o comunismo e o fascismo – todas igualmente concebidas no Iluminismo Ocidental, consiste na desconstrução da modernidade liberal que dele resultou, que se transformou num novo totalitarismo desrespeitador da diferença e da própria individualidade que diz defender. O que sucederá no pós-liberalismo Dugin não sabe ainda com absoluta certeza, até porque a «quarta teoria política» não é um sistema fechado mas aberto à novidade e à diversidade, sendo porém certo que entraremos (já entrámos) num novo ciclo multipolar, onde cada «verdade» valerá por si mesma e não pela interpretação, invariavelmente negativa, que sobre ela fazem as outras. Na Rússia, por exemplo, Dugin não considera sustentáveis os valores do individualismo ocidental, porque a tradição política do seu país privilegiou sempre a ideia do «coletivo» sobre o individual, seja no período feudal, no longo regime dos tzars ou naquele a que a Revolução de Outubro deu início. Foi essa identidade que se tentou apagar depois da queda de 1991, no fim do ciclo da «segunda teoria política», e que emergiu com o putinismo, porque o liberalismo de Boris Yeltsin lhe era totalmente estranho. «Vocês não nos compreenderam e nós não vos compreendemos», conclui.

“Tradição”

Dugin é, portanto, um inimigo da modernidade ocidental e, por conseguinte, um defensor do que antes dela imagina ter existido. A «quarta teoria política não consiste senão numa imensa animosidade à modernidade do Iluminismo, que se esgotou nas suas próprias contradições e chegou, por conseguinte, ao fim. Trata-se de um fatalismo marxista sobre o destino do capitalismo, enxertado numa «revolta contra o mundo moderno», no exato sentido que Julius Evola atribuiu à expressão que serviu de título ao seu principal ensaio filosófico-político. Evola, que Duguin não por acaso considera, numa pequena nota de pé-de-página da sua obra The Fourth Political Theory, «o membro italiano mais importante da escola tradicionalista». Uma «tradição» que o filósofo russo entende fundar-se nos valores da «religião, hierarquia e família», precisamente aqueles que, numa leitura enviesada, o liberalismo terá tentado destruir.

Esta predisposição intelectual avessa à modernidade, inimiga do que é novo e distinto de um passado imaginário de ordem e paz social, é, na verdade, muito antiga, quase contemporânea do início das Luzes, e surgiu como tentativa de preservação e, depois, de recuperação do que tinha sido o Ancien Régime, quase sempre confundido indevidamente com o Absolutismo, que também condenava somo uma traição modernista a essa ordem antiga. A teoria era simples e foi profusamente difundida pelo romantismo de oitocentos: o mundo medieval pré-moderno era um espaço de paz, liberdade, concórdia e cooperação, sustentado por uma aliança natural entre a nobreza e o povo, e por uma Igreja bafejada pela santidade. Ou seja, um mundo que nunca existiu. Se procurarmos as raízes mais antigas deste pensamento, iremos encontra-las nos teóricos franceses da contra-revolução, sobretudo em Louis de Bonald e Joseph de Maistre, e na sua animosidade à Revolução Francesa, não tanto pelo destino trágico que teve Luís XVI, com o que, apesar de tudo, a monarquia bem poderia viver (como viveu na Inglaterra pós-Carlos II), mas porque o princípio do «direito divino dos reis» caiu também com a mesma força com que se precipitou a cabeça decepada de Luís Capeto no cesto do cadafalso. Em Portugal também cá os tivemos, tendo sido a sua expressão maior o miguelismo, dito «tradicionalista», na primeira metade do século XIX, e, já no começo do século seguinte, com António Sardinha e o Integralismo Lusitano. Vale a pena ler, a propósito, A Teoria das Cortes Gerais, o livro que este último escreveu a título de introdução à obra do 2º Visconde de Santarém sobre as Cortes portuguesas, que é uma magnífica resenha da teoria política reacionária e antiliberal, onde inteligentemente se expõem os fundamentos do pensamento contrário à modernidade iluminista.

Esta ideologia foi deixando vestígios no pensamento político europeu, mas foi aa segunda metade do século XX que os franceses procederam a uma sua atualização profunda, com a Nouvelle Droite e Alain de Benoist, que, não por acaso, Dugin cita profusamente nas suas obras políticas maiores. Este autor francês, tal como o inspirador de Putin, também se afirma antiliberal, anticapitalista e anti-iluminista, e aristocraticamente despreza o «reino da quantidade» em que se transformou uma sociedade ocidental muito americanizada (vd., também, as obras de René Guénon, outro autor que se integra nesta perspetiva da decadência fatal da modernidade). A sua «direita», que se aproxima muito mais do jacobinismo construtivista, que ele diz enjeitar, do que de qualquer postulado doutrinário da direita histórica, apela a uma antiga herança europeia greco-romana, pré-cristã, panteísta e pagã, o que de todo não desagrada a Dugin.

Populismo

Nos nossos dias, a «revolta contra o mundo moderno» conhece diferentes e poliédricas feições nos países ocidentais. Encontramo-la, talvez não tão surpreendentemente quanto se pudesse pensar, na contestação visceralmente contrária ao Liberalismo Clássico da teoria anarcocapitalista de Hans-Hermann Hoppe, um antigo discípulo do filósofo esquerdista Jurgen Habermas, que diaboliza o constitucionalismo de oitocentos e a democracia, o tal  «deus» que supostamente «falhou». Por outro lado, ela é uma inspiração muito evidente dos diversos populismos partidários mais recentes, sobretudo daqueles que se posicionam na direita, mas também de alguns já emergentes na extrema-esquerda. Na direita mais extremada, e não obstante algumas diferenças que existem entre as suas diversas formações, todos são contrários e inimigos do que «está» (o «sistema», o «status quo», o «regime corrupto», etc.), apelando, quase sempre sem o compreenderem totalmente, a um mundo pretérito de honradez e verticalidade política que não conseguem determinar, de que os princípios da «tradição» duguiniana – «religião, hierarquia e família» – seriam a espinha dorsal, ainda que meramente instrumentais. A sombra homónima ocidental de Dugin foi o famosos Steve Bannon, um amigo da Rússia e de Putin, e o grande responsável pelo sucesso da estratégia da «desconstrução» do sistema com que Donald Trump ganhou as eleições presidenciais americanas. E de quem este se livrou imediatamente, mal chegou à Casa Branca.

Multipolaridade

Dugin considera que o Iluminismo e o Liberalismo chegaram ao fim, e que Vladimir Putin é o quinto cavaleiro desse apocalipse. A sociedade que se seguirá será multipolar e plural, e a Rússia retomará o seu «Dasein»existencial, liderando a «Eurásia», potência mundial terrestre que se contraporá à liderança marítima americana e inglesa. Cada uma dessas sociedades terá o seu modo de ver e viver as coisas, a sua própria interpretação dos factos, a sua verdade histórica e política, mas nenhuma se poderá voltar a impor às outras, sob pena de rebentar um violento e irreparável choque entre elas. Para evitar que isso aconteça, os EUA «só» têm de reconhecer publicamente que o mundo unipolar acabou, sugere Dugin em diversas entrevistas recentes. Menos do que isto será acelerar o caminho para o abismo, no qual a Rússia não se importará de precipitar, porque, de outro modo, continuando a aceitar a hegemonia unipolar americana, é como se já lá estivesse.

Putin tem dito repetidamente que a missão da Rússia na Ucrânia é pôr fim ao mundo unipolar liberal-americano e criar a multipolaridade geoestratégica, que será inicialmente composta pelos EUA, Rússia e China, mas que estará sempre recetiva aos outros, como a Europa, a América Latina e o Islão. Por conseguinte, ele não teme – nunca temeu – os mísseis da NATO nas fronteiras com a Ucrânia, porque sabe que nunca lá estiveram e que, ainda que lá tivessem estado ou venham a estar, seriam e serão sempre e só dissuasores. O que ele receia é que, tal como Marx e Evola, também Dugin esteja enganado e que, afinal, o capitalismo seja capaz de sobreviver e conquistar o espírito das pessoas do seu país. Essa é a fronteira intransponível que a autocracia do Kremlin tem de defender, até porque, no limite, a sua própria sobrevivência dependerá dela. Vladimir Putin sabe exatamente o que está a fazer e porque o está a fazer. E é por isso que ele é o mais perigoso inimigo que alguma vez nos enfrentou.