Em Portugal, o poder político sempre olhou para a liberdade de imprensa com as mesmas duas atitudes que uma criança dedica a um prato de legumes: por um lado, forçada resignação; por outro, indisfarçável repugnância. Há uma história célebre que vale a pena lembrar para ilustrar o ponto. Em 1978, durante um espúrio governo que juntou o PS e o CDS, o Jornal Novo publicou uma carta de leitor que tinha o combativo título “As três traições”. Segundo o muito ebuliente autor do texto, a troika de “traidores” era constituída pelo primeiro-ministro Mário Soares (que chefiava aquele governo), pelo líder do CDS Diogo Freitas do Amaral (que sustentava aquele governo) e pelo Presidente da República Ramalho Eanes (que permitia aquele governo). Quando leu o jornal, Eanes ficou furibundo — mas, em vez de soltar uma imprecação em privado e virar a página, decidiu processar o autor da carta e a diretora do Jornal Novo, que por acaso era Helena Roseta. Há um detalhe que torna a história ainda mais significativa: o texto tinha sido escrito por um jovem de 15 anos. Mas nem esse indício de imaturidade e inconsciência travou a indignação do Presidente da República perante as críticas que tinham sido publicadas. Foi preciso um juiz, na sentença do caso, explicar o óbvio ao Presidente acusador: aquele era, apenas, um caso de liberdade de imprensa que não merecia sanção. O facto de o jovem autor da carta se chamar Paulo Portas dá graça retrospectiva à história, mas não muda a lição essencial: o poder político em Portugal não gosta de ser questionado, escrutinado ou criticado.

E assim chegamos a agosto de 2024 e à deliberação da ERC onde se proclama que a entrevista de José Rodrigues dos Santos a Marta Temido durante a campanha para as eleições europeias se afastou do “registo de factualidade e das regras de condução da entrevista jornalística”, prejudicando “o direito dos telespectadores de serem informados”. Pelos vistos, as nossas autoridades entendem que numa entrevista política feita durante uma campanha eleitoral um candidato não pode ser pressionado a responder a perguntas incómodas, nem pode ser corrigido quando faz afirmações falsas. Ao longo de uma entrevista, para evitar incorrer na fúria da ERC, o jornalista deve comportar-se como um crente. Ou seja, deve benzer-se e ajoelhar-se em adoração.

Convém notar que não é assim em todo lado. Em democracias sólidas e saudáveis, as entrevistas políticas são momentos de inevitável tensão. Não porque se devam transformar num debate ou num julgamento, mas porque existem sempre perguntas a que os entrevistados prefeririam não responder. Há um caso famoso, citado em todas as discussões sobre este assunto: a entrevista feita, em maio de 1997, pelo jornalista Jeremy Paxman a Michael Howard, antigo ministro e na altura candidato a líder do Partido Conservador. Na fase final da entrevista (que, por feliz coincidência, também durou cerca de dez minutos, tal como a de José Rodrigues dos Santos) surgiu um tema desconfortável para Michael Howard: quando era ministro da Administração Interna ele tinha ou não ameaçado um diretor dos serviços prisionais que o iria desautorizar caso ele não tomasse uma determinada decisão do agrado do governo? O entrevistado, como se percebeu rapidamente, tinha alguma coisa a esconder. Por isso, o jornalista repetiu a mesma pergunta 12 vezes durante 1 minuto e 47 segundos. A dada altura, aproximando-se dos limites da paciência, chegou a dizer: “Vou ser terrivelmente rude, mas é uma pergunta de sim ou não”.

Jeremy Paxman usou o mesmo estilo combativo múltiplas vezes, com políticos de diferentes partidos. Em 2005, quando Tony Blair se recandidatou a primeiro-ministro usando como argumento de campanha a necessidade de o país regressar aos “valores de antigamente”, Paxman perguntou-lhe, num tom angelical: “Como é que conjuga isso com o facto de o seu partido ter aceitado financiamento de pornógrafos?”. O líder do Partido Trabalhista fez um sorriso nervoso e respondeu: “Estas histórias sobre financiamento partidário vão e vêm. As pessoas de que falou são donas de um dos principais grupos de comunicação social do país, os jornais Express. Por isso, acho perfeitamente natural que aceitemos uma doação deles.” Jeremy Paxman foi ao “repique”, como diria José Rodrigues dos Santos: “Além dos jornais Express, também são donos da Horny Housewives e da Mega Boobs. Conhece essas revistas?”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Igualmente em 2005, o muito desagradável e pouco recomendável George Galloway, que acabara de ser eleito deputado, respondeu a uma pergunta de Jeremy Paxman dizendo “Siga para a sua próxima pergunta”, ao que o entrevistador contrapôs: “Mas ainda não respondeu à primeira”. Galloway insistiu, com o dedinho estendido: “Estou a avisá-lo: se me volta a fazer essa pergunta vou-me embora. Há muitos jornalistas que querem falar comigo”. Jeremy Paxman reagiu imediatamente à intimidação: “Não tente ameaçar-me, se faz favor”. Galloway tirou o microfone da lapela, levantou-se e foi-se embora — mas, mesmo tendo sido interrompida prematuramente, aquela nano-mini-micro-entrevista foi extremamente reveladora.

Numa outra entrevista, em 2012, a conservadora Chloe Smith, que se tornara a mais jovem integrante de um governo na história do Reino Unido, começou a embrulhar-se em justificações mal explicadas, mal pensadas e mal amanhadas. Jeremy Paxman interrompeu-a: “Isso é uma piada?”.

Naturalmente, nem toda a gente gosta das entrevistas de Jeremy Paxman, mesmo entre os jornalistas — Jon Snow, apresentador do Channel 4 News, por exemplo, defende que os políticos devem ser tratados com “mais deferência” na televisão. Mas talvez seja útil ter em conta duas outras informações adicionais. A primeira é que Paxman ganhou por quatro vezes o prémio de Entrevistador do Ano atribuído pela respeitadíssima Royal Television Society. A segunda é que estas entrevistas foram todas transmitidas pela BBC — tal como a RTP, um canal público subsidiado com dinheiro dos contribuintes. Aliás, a BBC tem grande orgulho nelas. Escrevendo em tempos sobre “o problema Paxman”, um dos diretores da estação defendeu que as entrevistas a políticos “devem ser justas, mas não devem ser moles”.

Quando publicou o seu livro de memórias, Jeremy Paxman voltou à entrevista a Michael Howard para escrever aquilo que devia ser uma evidência: “Como entrevistador, quando fazes uma pergunta é teu dever tentar obter uma resposta”. Se calhar, alguém devia esculpir esta frase numa pedra, como se fosse os Dez Mandamentos, e entregá-la à porta da ERC.