Uma empresa de mobiliário lançou um anúncio em que aludia aos 75.800€ encontrados no gabinete do chefe de gabinete do dr. Costa. Numa primeira fase, os avençados do PS ficaram à espera de directivas sobre o modo de actuar. Numa segunda fase, o responsável pela propaganda do partido, um sujeito que me dizem ter sido comentador da bola, deu o mote: o fundador do Ikea foi nazi, revelação chocante que era do domínio público há décadas e fundamentada numa tolice de adolescência (é difícil de acreditar, mas há quem seja comunista numa idade avançada). Numa terceira fase, os avençados do PS saíram a repetir o guião: o Ikea é fascista, os clientes do Ikea são fascistas, os publicitários do Ikea são fascistas e o anúncio serve os interesses da “extrema-direita”, naturalmente fascista.
O episódio, depressa engolido pela notícia de que o “eng.” Sócrates iria a julgamento pelos crimes que um juiz simpático achava que ele não cometera, mostra pela enésima vez a sofisticação do debate político nacional: de uma graçola destinada a vender uma estante saltou-se sem interrupções para o nazismo. A “reductio ad Hitlerum” nunca teve tanta saída quanto nestes desvairados tempos. Aliás, a falácia ficou a centímetros de ser usada novamente no dia seguinte, aquando das evoluções no caso do herdeiro do volfrâmio. Minutos após se conhecer a decisão do Tribunal da Relação, ouvi na rádio alguém notar que o grande perigo em tudo isto é a possibilidade de favorecimento eleitoral da “extrema-direita”.
Os escândalos, pelos vistos, não são os escândalos propriamente ditos. Como na história do tal sr. Escária, em que largos milhares de euros guardados sem justificação a escassos metros do primeiro-ministro não indignaram quase ninguém, também a história do “eng.” Sócrates, e dos largos milhões que ele alegadamente abarbatou, não constitui um problema. O problema não é que dois governantes se vejam envolvidos ou rodeados de trapaças dignas da Nicarágua: o problema é que as trapaças se venham a saber, maçada que óbvia e tragicamente pode beneficiar a “extrema-direita”. O ideal é que a residência oficial de S. Bento passe a ostentar o dístico: Não roubarás (de maneira a dar nas vistas, porque beneficia a “extrema-direita”)!
Com excepções, por exemplo a da Madeira, em que as trapalhadas protagonizadas pelo chefe local e pelo autarca do Funchal são igualmente susceptíveis de beneficiar a “extrema-direita” (juro que vi a tese ser usada), o papão da “extrema-direita” é sobretudo agitado pelas bandas do PS e dos partidos leninistas seus aliados. É o “argumento” de campanha possível na ausência de argumentos de campanha plausíveis. Num certo sentido, compreende-se: além de ostentar um inacreditável candidato, o PS tem o país esventrado de alto a baixo, da saúde ao ensino, da segurança à habitação, para não falar do estado da economia e do, lá está, vasto investimento em corrupção. Não são exactamente bandeiras para exibir em comícios e tempos de antena. Resta-lhes reformular, só muito ligeiramente, o dichote de Vasco Gonçalves: “Quem não está connosco, está com a ‘extrema-direita’”.
Há aqui uma vantagem e uma desvantagem. A vantagem é que o “argumento” é de amplo espectro, leia-se a sua aplicação não se esgota nas trafulhices e serve para qualquer maleita. Notar que o PS demoliu por completo o SNS é fazer o jogo da “extrema-direita”. Sugerir que as políticas de educação vigentes estão a conduzir os alunos para os níveis de erudição da Serra Leoa é coisa de racista. Criticar as fronteiras abertas aos desgraçados tão desgraçados que escolhem Portugal para subir na vida é típico de facho. Explicar que o sonho do casal Pedro Nuno & Mariana consiste em abolir a propriedade privada que não seja a deles é o mesmo que preencher a ficha de inscrição nas Waffen-SS. E por aí afora.
A desvantagem da estratégia é o seu sucesso depender da existência de dois fenómenos: a) um eleitorado de esquerda geneticamente disposto a engolir as mais extravagantes patranhas; b) uma “direita” disposta a cair na armadilha e, novo cliché, a enfiar a carapuça. Dado que em a) há gente que acredita nas virtudes do leninismo e na menstruação masculina, e que em b) há partidos empenhados em obedecer às regras estabelecidas pela esquerda, a estratégia não tem desvantagens, e o sucesso é uma forte hipótese.
Entretanto, ainda na esfera da alta política, esta semana houve a transferência de outra obscura sumidade do PSD para o Chega. A figura em questão é o dr. Maló de Abreu, deputado próximo de Rui Rio e das savanas de Angola, país onde declarara residir para efeito de ajudas de custo, embora para facilitar dormisse em Coimbra. Ao contrário do que fez o dr. Montenegro, que manteve a confiança no fulano da Madeira horas antes de este se demitir, e do que fizeram todos os líderes do PS nos últimos 30 anos, que não retirariam a confiança nem ao Estrangulador de Boston, o dr. Ventura abortou a transferência e despachou o dr. Maló de Abreu mal se descobriu a habilidade dos 75 mil euros (decerto um valor padrão). Uma evidente asneira: assim o dr. Ventura está a beneficiar a “extrema-direita”.