Era um narrador único. Para mim, o maior escritor de língua portuguesa vivo. Morto, agora, se os grandes escritores morressem. A primeira coisa que li dele foi em 1975. Estava no Brasil, exilado, emigrado ou refugiado político, quando saiu Feliz Ano Novo, um livro de contos diferente de tudo o que já tinha visto, escrito em português.

Havia ali coisas que me lembravam Dashiell Hammett ou Raymond Chandler e até Mickey Spillane, um autor policial de grande popularidade que conhecia da adolescência, da colecção Vampiro. O protagonista de Spillane, que abusava de gangsters maus e de miúdas ‘boas’, era um detective, Mike Hammer, que, honrando o nome, batia que se fartava.

Naquele Feliz Ano Novo, Fonseca parecia ter empurrado toda essa ficção policial e popular da grande cidade, do sexo, da violência e do crime para dentro da realidade brasileira, mergulhando-a no quotidiano das suas cidades e periferias, na singularidade dos seus vilões, dos seus escroques, dos seus homens e mulheres comuns. E fazia-o com o rigor e a economia cirúrgica da grande literatura, ou da ‘grande arte’ de precisar palavras e desventrar realidades: ‘Não há sinónimos’, diria mais tarde, ‘só há o mot juste, como queria Flaubert’.

Feliz Ano Novo, que abre o volume de contos a que dá título, foi talvez das histórias mais brutais e aparentemente amorais que li; com um trio de marginais esfaimados e armados que, no Rio de Janeiro, na noite do Ano Novo, depois de verem na televisão que ‘as lojas bacanas estavam vendendo adoidado roupas ricas para as madames vestirem no reveillon’ e que ‘as casas de artigos finos para comer e beber tinham vendido todo o estoque’, decidem atacar uma mansão em São Conrado. Roubam, violam, matam e experimentam a eficácia das armas (‘Viu, não grudou o cara na parede porra nenhuma’… ‘Vê como esse vai grudar.’), e depois desse breve encontro entre dois mundos aparentemente alheados um do outro, retiram-se para acabar a passagem do ano a beber e a comer os restos que trouxeram.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Rubem Fonseca é mestre nestes retratos de uma sociedade cuja leveza (que é também vital, criativa, lúdica, poética, musical) carrega uma enorme violência, uma conflitualidade social extrema, uma luta de classes não consciencializada politicamente, atenuada e disfarçada pelo samba e pelo futebol. Uma leveza que quando explode, como em Feliz Ano Novo, se torna insustentável, real, assustadora.

Curiosamente, depois de três edições e trinta mil exemplares vendidos, o livro foi apreendido e proibido pelo Ministro da Justiça do regime militar, Armando Falcão. Curiosamente, não só porque a proibição de Feliz Ano Novo veio depois de o livro ter sido best-seller e de estar traduzido no estrangeiro, mas também porque em 1975 o Presidente já era Geisel e o estratega da transição, o general Golbery do Couto e Silva, Ministro-chefe do Gabinete Civil do Presidente, era amigo próximo e admirador de Rubem Fonseca.

E Rubem Fonseca estivera no IPES – Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais –, um braintrust apoiado pelo empresariado e com ligações a alguns militares, como o próprio Golbery do Couto e Silva. O IPES iria ajudar a criar na sociedade civil o clima de contestação aos governos de esquerda e o medo de uma tomada do poder pelos comunistas que, por vasos comunicantes, chegariam aos “coronéis” do golpe de 64.

Embora mais discreto que Nelson Rodrigues no seu apoio ao regime militar, Rubem Fonseca não deixa de revelar, também na sua escrita, um profundo pessimismo antropológico, uma concepção da natureza humana, que o põe nos antípodas do pensamento de esquerda.

Seja como for, ninguém como ele retrata as “selvas de concreto” cariocas ou paulistas, através daquilo que Alfredo Bosi chegou a definir como “literatura brutalista”.

Nascido em Juiz de Fora (Minas Gerais) e licenciado em Direito, Rubem trabalhou como investigador na Polícia do Rio de Janeiro e viveu em Nova Iorque nos anos 50. Dessa experiência e do seu engenho e arte saem enredos tecnicamente precisos à volta de crimes e mistérios que chegam a lembrar os contos góticos de Edgar Allan Poe. Ora na pele do polícia ora na pele do criminoso, Fonseca explora uma espécie de híper-realismo criminal fantástico em que os heróis, ou melhor, os protagonistas principais, são preferencialmente vilões, bandalhos, cínicos ou mulheres e homens comuns. Os seus investigadores, embora não destituídos de inteligência e lógica, estão longe do dedutivismo tranquilo e cerebral de Sherlock Holmes ou do inspector Maigret mas estão também longe do sentido trágico dos personagem de Chandler ou Hammet. São Mattos, Guedes, ou Mandrake, (como o mágico dos quadradinhos americanos, que também resolve crimes) e movem-se num mundo de extremos – a grande cidade e as suas periferias, os senhores do sistema e os marginais.

Não há bons nem maus: há gente comum, ordeira, decente, e vilões, escroques, perversos; e há ainda os que não são nem uma coisa nem outra e os que ‘têm dias’. E nisso, socialmente, não há distinções: ricos, pobres, ou remediados podem ser bons, maus ou assim-assim; podem ter comportamentos morais, imorais ou amorais, decentes ou psicóticos.

Há, sobretudo, uma paixão pela verdade e pela precisão, uma sobre-exposição brutal de uma realidade brutal, ora quase sórdida, ora declaradamente sórdida. E há, também, um peculiar sentido de humor, próximo do mórbido e do grotesco ou das calaveras de la muerte do folclore mexicano.

A capacidade de construção romanesca de Rubem Fonseca torna-se bem evidente em Agosto, um romance histórico passado no Rio de Janeiro que tem como pano de fundo o suicídio de Getúlio Vargas, em 24 de Agosto de 1954. A escolha de Getúlio Vargas é típica de Fonseca, já que Vargas foi um dos mais polémicos, dos mais amados e dos mais odiados políticos de toda a História do Brasil: Getúlio, o líder da Revolução de 30, o ditador do Estado Novo, o presidente que volta por via democrática em 1950; Getúlio, o nacionalizador do petróleo, o ‘pai dos pobres’, o tirano opressor, o mito com direito a samba (‘Doutor Getúlio’).

Agosto tem como investigador e protagonista o comissário Mattos. A obra estrutura-se em 26 capítulos, cada um correspondente a um dia de Agosto, e a trama ficcional adapta-se e adapta a realidade histórica. O roteiro final, que leva ao suicídio de Vargas, começa com o atentado falhado contra o jornalista Carlos Lacerda, grande inimigo do Presidente. Como é dado no romance histórico – de Dumas a Ponson du Terrail, de Walter Scott a Arnaldo Gama – Agosto mistura personagens reais, cuja vida e personalidade não pode ser muito mexida ou alterada, com personagens de ficção que, esses sim, têm vida e acção autónomas. Os personagens fictícios são, por isso, agentes da trama mas não podem mexer no Destino. Getúlio é o personagem que domina a história mas que, como Napoleão na Guerra e Paz de Tolstoi, só pairar no cenário. Getúlio vai morrer, tal como Napoleão vai perder e sabemos desde o princípio que vai ser assim. Gregório Fortunato, o Anjo Negro, chefe da segurança de Vargas, é o mandante do atentado contra Lacerda. Lacerda escapa, mas um oficial da sua segurança morre e aí tudo se precipita. O comissário Mattos centraliza a investigação e relaciona o atentado contra Lacerda com a morte do milionário Gomes de Aguiar, um crime que também investiga. O mandante desse crime é Pedro Lomagno, que ordenará outros, entre eles a morte do próprio comissário Mattos. Além da violência política e económica, desdobram-se, em Agosto, intrigas sentimentais e ligações passionais: Mattos hesita entre duas mulheres e os adultérios cruzam-se com a corrupção e as traições policiais e políticas. É um retrato negro do Brasil dos anos 50, contado num estilo de permanente suspense, um romance de 1990, da maturidade de Fonseca, cinematográfico como todos os seus escritos e que, por isso, deu origem a uma minissérie de televisão da Globo.

Os títulos dos livros de Rubem Fonseca são também todo um programa. E ou pela precisão, ou pela extensão, ou pelo insólito, lembram-me sempre muito os de Camilo: Patrícia McCartney (1967), O Cobrador (1972), A Grande Arte (1983) Bufo & Spallanzani (1985), E do Meio do Mundo Prostituto só Amores Guardei ao Meu Charuto (1997) Mandrake, a Bíblia e a Bengala (2005), O Seminarista (2009) O Selvagem da Ópera (2011). Li-os quase todos.

‘Rubem Fonseca morreu sendo imortal’ – disse Nelida Piñon na passada quarta-feira, quando o escritor morreu aos 94 anos de ataque de coração. A Nélida acrescentou ainda que  o Rubem ‘traduzia o mundo que se desmoronava em volta e se emocionava’ e que ‘à sua maneira era um moralista latino, de molde clássico, e padecia, portanto, com o ser que éramos e que não quisera que fossemos’.

Nada de mais verdadeiro: a indiferença, a precisão, a obsessão dos personagens pela violência e pelo sexo, a violência que os rodeia mas que vem também deles, por impulso de acção ou necessidade de reacção à solidão a à dureza da grande cidade, e a exposição da ‘verdade nua e crua’ de tudo, parecendo amoral encerra uma profunda nostalgia por uma moralidade perdida ou por reencontrar; parecendo indiferente, empenha-se na denúncia.

Nelson Rodrigues, “o Anjo Pornográfico”, também era assim. Hoje, o cubano Pedro Juan Gutiérrez e o francês Michel Houellebecq, no seu tempo e a seu modo, também por aí andam.