O ano de 2022 fica inevitavelmente marcado pela invasão russa da Ucrânia, o que deu origem a uma explosão de publicações em torno da história dos dois países e dos seus líderes. Mas um livro mais antigo que vale a pena recordar é O choque das civilizações e a mudança na ordem mundial, de Samuel Huntington. Publicado em 1996, esta obra apresentou-se em contraciclo com o espírito otimista que afirmava a vitória das democracias liberais. Em sentido contrário, Huntington defendeu que um novo paradigma se aproximava, com o declínio do poder do Ocidente, conduzindo a um retorno das identidades nacionais: “no mundo pós-guerra fria as diferenças mais importantes entre os povos não são ideológicas, políticas ou económicas. São culturais.” O atual conflito, e aquelas histórias e biografias, devem então ser interpretadas a partir de uma visão mais ampla da teoria política, que permite analisar esta mudança paradigmática.
O argumento de Huntington foi lido, na altura, como uma reação à tese de Francis Fukuyama sobre o fim da história, mas o pensamento dos dois autores acabou por convergir. O abandono do credo na vitória liberal levou Fukuyama a debruçar-se sobre o crescimento dos movimentos identitários, à esquerda e à direita, em Identidades, livro de 2018; e, em 2022, analisou o modo como o Liberalismo tem vindo a falhar no cumprimento do seu projeto em Liberalismo e seus descontentes. Esse descontentamento tem alimentado as franjas mais radicais da esquerda e da direita, resultando num movimento comum de autoritarismo que põe em causa um dos pilares fundamentais das sociedades liberais: a liberdade de expressão.
Esse ataque à liberdade de expressão tem vindo a ser identificado com a expressão mais ampla de “cultura de cancelamento” (cancel culture) e é particularmente visível no mundo académico anglo-americano, impulsionado pelo Social Justice movement. Para compreendermos o seu sentido teórico-filosófico, temos de nos debruçar sobre a Teoria Crítica da Raça, nascida nas faculdades de Direito norte-americanas.
Para quem pretende um primeiro contacto com esta teoria, a sugestão será começar por Teoria Crítica da Raça: uma introdução, de Richard Delgado e Jean Stefancic, que expõe, de forma sucinta e clara, os seus principais elementos. Fica um aviso à navegação: esta teoria não assenta exclusivamente em argumentos loucos e descabidos. Pelo contrário, é muitas vezes possível compreender o que levou os autores a formular estas ideias. O problema é que a sua aceitação unidimensional e acrítica nos faz cair numa posição tão radical como a defendida por Robin DiAngelo, em Fragilidade Branca, que descrevi aqui: e para este livro já é necessário algum estômago, em especial porque nos faz mergulhar no mundo da epistemologia do eu.
A epistemologia do eu caracteriza-se por fundar o conhecimento da realidade exclusivamente na experiência pessoal e partir do princípio de que essa experiência é necessariamente verdadeira. Encontramos este elemento em DiAngelo, mas também em Reni Eddo-Lodge, com Porque Deixei de Falar com Brancos sobre Raça, e Ta-Nehisi Coates, com Entre mim e o mundo, vencedor do National Book Award de 2015. Mas importa recordar que é possível escrever sobre estes assuntos sem adotar a perspetiva do eu e um permanente tom de vitimização: em 1981, bell hooks publicou Não serei eu mulher?, um livro que se tornaria um clássico no domínio do feminismo negro e que vale a pena ler.
Os problemas deste modo identitário de pensar a política e a sociedade, bem como as consequências para as sociedades liberais, têm vindo a ser progressivamente identificados. A partir de uma perspetiva filosófica, Helen Pluckrose e James Lindsay apresentam, em Teorias Cínicas (2021), uma abordagem muito detalhada às teorias que dão forma às diferentes áreas do ativismo académico crítico. E em 2022, temos A Guerra ao Ocidente, de Douglas Murray, que, numa perspetiva mais jornalística, procura denunciar os efeitos da Teoria Crítica da Raça nos nossos dias.
Independentemente das formas de resistência que vão surgindo, é inegável que vivemos hoje num paradigma identitário e a literatura revela-o abertamente. Longe vão os tempos do realismo de inspiração comunista ou do estruturalismo sem autor. A literatura vive hoje muito da incursão biográfica e das reflexões sociológicas que se retiram dela. Um bom exemplo é, agora em contexto francês, o de Édouard Louis, que viu traduzido entre nós, em 2022, o seu primeiro livro: Para acabar de vez com Eddy Bellegueule, depois de História da violência (2019) e Quem matou o meu Pai (2020). Os três livros giram em torno da sua experiência com as duas Franças – a rural e a urbana – e o modo como elas condicionam e enclausuram a identidade pessoal. Tratando-se de um autor tão jovem, fica a dúvida sobre se Édouard Louis será capaz de escrever continuamente sobre as mesmas experiências ou acabará por esgotar a sua capacidade criativa por estar limitado a essa incursão biográfica.
Com mais de 80 anos, Annie Ernaux já não levanta essa preocupação, apesar de encontrarmos na vencedora do Nobel da Literatura de 2022 o mesmo estilo autobiográfico. Com uma particularidade: os livros de Ernaux são escritos à distância. Esse distanciamento, temporal e intelectualizado, traduzem-se numa escrita fria, objetiva, depurada de excessos, mas que não deixa de nos envolver e de um modo quase imagético. Os anos, em particular, é como uma longa-metragem da sociedade francesa que nos obriga ao reconhecimento desse ditador que é o tempo:
“Tudo se apagará num segundo. O dicionário acumulado desde o berço até ao leito de morte irá desaparecer. Depois, o silêncio e nenhuma palavra para o dizer. Da boca aberta nada sairá. Nem eu nem mim. A língua continuará a pôr o mundo em palavras. Nas conversas à volta de uma mesa em dia de festa seremos apenas um nome, cada vez mais sem rosto, até desaparecermos na multidão anónima de uma geração distante.”
Resta a literatura para salvar alguma coisa:
“Portanto, o livro a fazer era um instrumento de luta. Nunca abandonou esta ambição, mas agora, acima de tudo, gostaria de captar a luz que inunda rostos doravante invisíveis, toalhas de mesa cheias de comida desaparecida, essa luz que já lá estava, dentro das narrativas dos domingos da infância, e nunca mais deixou de descer sobre as coisas no momento em que são vividas – uma luz de outrora. Salvar (…). Salvar qualquer coisa do tempo onde não voltaremos a estar.”
Boas entradas e um bom ano de 2023!
PS: Uma visão política identitária comporta como consequência inevitável a limitação da liberdade de expressão. Nos Estados Unidos, isso já é assumido como um problema académico e começa a ser discutido: no início do mês de novembro, ao abrigo da Stanford University, foi organizada uma conferência sobre liberdade académica. O evento esteve envolvido em polémica, mas reuniu as mais relevantes figuras que discutem habitualmente o tema, como Jonathan Haidt, Jordan Peterson, Greg Lukianoff, Douglas Murray e Niall Ferguson (a conferência foi gravada e as comunicações estão disponíveis aqui). A lista de participantes é ampla, mas quando se perguntou quantos já tinham sido cancelados, a maioria ergueu o braço. Como Francisco Bosco diz, em O diálogo possível, estes acontecimentos não são excessos; são antes exemplos que decorrem daqueles princípios teóricos.