1 Sem novidade mas um grande exclusivo: dois santos nas recentes festas de Junho, ambos transportados em andores e logo com o mesmo nome: um, Santo António de Lisboa, muito nosso conhecido, levado pelo calor popular; o outro, recém santificado, Santo António Costa, colocado em relevo no andor da media. Num ápice, dissolveram-se críticas, reticências, dúvidas, desilusões. Venceu a canonização. A esquerda é naturalmente dada a “isto”, a media, por devoção ou conveniência profissional, também: tocam-se os tan-tans da selva, há um salto instantâneo para écrans e teclados de computadores. Nunca há ausências nas grandes missas onde a esquerda agiganta os “seus” e muito menos hesitação ou dificuldade. Trata-se de pertença mas sobretudo da espantosamente acrítica facilidade com que se auto-atribuem o agir como únicos. Como por estranho direito próprio. O resto? São intrusos na missa errada.).

2 Não falo de pertenças antigas e genuínas, que obviamente se respeitam: os tempos, num dantes já longínquo, podiam ser ferozes para elas. Evoco antes uma pertença “descoberta” em 74 , ancorada em 75 e nunca auto-revista ou sequer revista, o que talvez explique que grande parte da comunicação social, seja “dali”, naturalmente e sem vacilação. Talvez porque o poiso seja acolhedor; talvez porque destoar nunca ocorreria; talvez porque compense. Não sei. E não há sombra de ironia no que digo. É um vento que sopra forte, o mesmíssimo vento há décadas. Forte: a esquerda tem a prioridade no espaço mediático, ou quase, mesmo quando fora do circuito do poder. Mais as universidades, o debate público, a maioria da opinião publicada, os “fóruns”, o que se vê, lê, ouve. A esquerda fornece e congrega; a grande família aceita e junta-se. Por detrás, está outro país mas nunca sabemos bem qual é, nem como: ouvimos pouco a sua voz.

3 Vem isto a propósito do andor de António Costa. Não foi por acaso que na primavera de 2021, quando iniciei – na ainda TVI 24 – os meus comentários políticos semanais, um dos temas do primeiro comentário foi a “possibilidade” da ida de António Costa para Bruxelas. A fonte era boa e o sonho, estava de acordo com o que Costa gostaria de fazer (ou preferiria fazer?). Amparada na fonte e na verosimilhança do que ela me contava, avancei “Costa vai para a Europa”. (Não me lembro se pus ponto de interrogação.)

Hoje, sorrio. Nunca mais o vi, mas quantas vezes não o encontrei em funções partidárias, parlamentares, governativas, autárquicas? Em “n” entrevistas escritas, televisivas, radiofónicas? Em conversas, casas, restaurantes, aviões; no estádio do “Glorioso” do qual ambos somos incondicionais. Era – de longe – a pessoa com quem mais falava no PS e depois quase a única: corria bem, para quê mudar? Correu sempre bem, de resto, eram momentos interessantes, vivos, politicamente úteis, animados, por vezes divertidos. (Não me admira que os seus pares europeus achem o mesmo, só vêm “este” António Costa. Não precisam do outro.)

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Uma vez, era ele presidente da Câmara, almoçávamos no restaurante de um hotel recém aberto do qual estava orgulhoso, e vieram à baila fidelidades partidárias, a sua natureza, a sua escolha, a influência, a dependência: e seria eu capaz de alguma vez não votar no PSD como ele nunca deixaria de votar no PS? “Não, não seria”. Votaria mesmo que “lá estivesse um copo”. Ele, mesmo que “só lá estivesse um porteiro”. Não era devoção, eram escolhas.

E, uma vez por outra, havia também algumas confidências, políticas ou não. Guardei-as bem.

4 E depois um dia, veio a geringonça: a “passista” que sou não gostou do desenlace. E a “soarista” que fui, começou logo a pensar no dr. Soares. Um mau bocado. Costa meteu a extrema-esquerda no bolso (a agonia de hoje foi semeada aí): fê-los engolir o que na véspera lhes desonrava a cartilha marxista: Nato, UE, moeda única, e tutti quanti. Em troca deu-lhes os “costumes”, coisa que lhe foi barata mas que sabia ser cara aos bem vindos.

Reformas? Não lembro. Avanço, iniciativa, progresso? Entendimento – por exemplo – da importância dos criadores de riqueza – e logo de melhor emprego e salários menos humilhantes – como são empresas, empresários e empreendedores? Sólida argumentação num apelo ao compromisso com o país? Não se ouviu. (Acho a sério que António Costa se bastava si mesmo com aquele falso, depois burlesco, e finalmente obsessivo argumento de que “a culpa era de Passos Coelho.)

Centeno cativou, estrangulando os serviços públicos, ou seja, prejudicando os que não tinham seguros de saúde, nem filhos em escolas privadas, mas… que importância? Era preciso mostrar serviço a Bruxelas depois de alguns vexames e brilhar cá dentro: “contas certas, sou eu!”. Não estou a menorizá-las, nem a negá-las, estou a contextualizá-las. Centeno é hoje um mito e pode até – dizem – vir a vestir-se de candidato presidencial… (Um dia houve um grande político que me explicou que “em política há sempre pior”. De facto. )

5 Maioria absoluta. Surpresa. Mas apostei desde esse dia que o seu líder não tinha gostado dela por aí além, já com a Europa na cabeça. Não pode ter gostado: foi o maior desperdício que me lembre no uso desse formidável instrumento político. E o mais misterioso: deficientíssimo elenco governamental – do qual excluo Fernando Medina, sempre num camarote à parte; casos, demissões, más escolhas, chatices, serviços públicos nas lonas, desconfiança. “A culpa era do Passos”. Seis, sete anos depois? Os que fossem precisos.

Não é reformista quem quer, mas nem sequer parece que ele quisesse.

Sem queda para liderar executivos ou conduzir uma orquestra de distintos instrumentistas, não animou governações, nem estimulou iniciativas. O legado de quase uma década é perplexante.

Costa é um político clássico: jogo de cintura, gosto pelo consenso, arquitecto de pontes, prática do cálculo político, uso do cinismo, capacidade para a implacabilidade com inimigos (e não só).

E depois, numa manhã politicamente estranhíssima, veio uma trapalhada propositadamente nunca bem contada: nem por uns, nem por outros, nem por ninguém.

Era supostamente com a Justiça afinal não foi, mas António Costa não perdeu um minuto: saiu. E podia não o ter feito. Mas fez.

Visto de hoje não deixa de ser uma grande história política.

6 Costa ganhou. Agora, Europa. É ofício de outra natureza que irá bem com a sua.

E com as suas características, gostos, capacidades, hábitos. Astuto mais que reflexivo, negociador mais que elaborador, comunicativo, ágil, é com tudo isto que é muito e lhe vai ser útil, que se sentará numa cadeira na qual pensava há anos. Para a qual olhou muito seriamente, e se activou, se mexeu, e negociou. Também há muito.

É capaz de ter sorte. Como sempre. António Costa sabe fabricá-la e depois produzi-la Como ninguém na política portuguesa.

6 Declaração impopular*: às vezes, é verdade, lembro-me muito de alguns momentos que passámos juntos, profissionalmente, civicamente, pessoalmente. E no Estádio da Luz.

* A Direita não me perdoará, a esquerda achará que não tenho o direito.

PS: Foi de antologia e ficará obviamente no livro do futebol internacional. Nem sei se alguém fez igual desde que se compete atrás de uma bola. A façanha de Diogo Costa foi absolutamente histórica. Se me tivessem contado nunca acreditaria.