As últimas semanas puseram o regime em risco. Parece catastrofismo, mas é realismo. Tudo o que podia correr mal, correu ainda pior; e, de repente, passámos aquela invisível linha de fronteira que separa um problema temporário de uma crise permanente. António Costa escolheu Miguel Alves, um colaborador antigo, para seu braço direito, mesmo sabendo que era arguido em dois processos — e o secretário de Estado Adjunto só saiu do governo, arrastado pelos cabelos, quando foi acusado pelo Ministério Público e depois de se saber que tinha atribuído 300 mil euros a um empresário fantasista por um pavilhão fantasioso. O seu substituto, António Mendonça Mendes, foi promovido a secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro e, como inevitável consequência, passou a sentar-se à mesa do Conselho de Ministros com a irmã, Ana Catarina Mendes — isto apesar de, anos antes, sentindo-se encurralado pelo familygate, António Costa ter estabelecido o princípio informal de que não podia haver familiares com essa proximidade no governo. Alexandra Reis foi despedida da TAP com uma indemnização de 500 mil euros para ser colocada noutra empresa pública ao fim de escassos meses — de onde pulou, sem hesitações nem cerimónias, para a secretaria de Estado do Tesouro. O ministro Pedro Nuno Santos demitiu-se do governo na sequência desse caso, invocando para si próprio o estatuto de mártir da ética republicana — e, passadas umas semanas, perante a iminência de uma comissão parlamentar de inquérito à TAP, lembrou-se que, afinal, tinha sido ele próprio a dar autorização a essa indemnização, através de uma mensagem de WhatsApp. E o ministro Fernando Medina teve que dar explicações sobre a questionável contratação de um ex-autarca do PS para controlar as obras da Câmara de Lisboa — e, ao dar essa explicação, ignorou factos comprometedores e insistiu em argumentos descredibilizadores, como o de que a escolha “não teve nada a ver com um critério partidário”.
Estes episódios são exemplares, no sentido em que representam os vários problemas do regime. O primeiro caso foi uma demonstração de indiferença perante uma aplicação negligente do dinheiro público. O segundo caso foi uma demonstração de que as regras valem ou deixam de valer consoante as conveniências de quem manda. O terceiro caso foi uma demonstração de incúria na gestão de empresas públicas. O quarto caso foi uma demonstração de amadorismo e diletantismo no exercício de funções governativas. E o quinto caso foi uma demonstração da forma como o cartão partidário se sobrepõe a exames de competência em organismos públicos.
A soma de todos estes escândalos, em rápida sucessão, criou uma ruptura funda e grave entre aqueles que estão no círculo do poder (que são poucos, mas parecem muitos) e aqueles que não estão (que são muitos, mas parecem mandar pouco). Atingiu-se um ponto de não retorno e, para nosso mal, o único partido que percebeu a dimensão cataclísmica do que aconteceu foi o Chega. Na convenção do partido no último fim de semana, André Ventura anunciou, de forma repetida, que, nos próximos anos, o Chega vai focar a sua ação política no “combate à corrupção”. E, se nada mudar radicalmente, Ventura vai conseguir muitos votos com isso — porque, de facto, o regime tem um problema que não está a conseguir resolver.
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