O segundo milénio da nossa civilização principiou com um declínio que ameaça regredir o que foi conquistado por grandes homens (e mulheres) que ficaram na História ou que permaneceram anónimos, mas cujo legado nos permitiu chegar a uma evolução social e intelectual sem paralelo. O progresso científico e tecnológico é apenas o resultado dessa transformação gradual, com a primazia do engenho humano e da organização de esforços com o mesmo objetivo. No entanto, há algo que nos está a puxar para trás e que deverá ser um recuo civilizacional de décadas e talvez séculos. Num mundo de pessoas perdidas, solitárias e sem identidade própria.
O que é comum em todas as seitas é haver uma pessoa que diz ter uma relação especial com uma entidade superior, seja através de um suposto contato direto ou visão privilegiada de livros antigos considerados sagrados, como a Bíblia ou o Alcorão. A partir daqui, essa pessoa convence uma série de outras que o seu poder único é especial e as vai libertar de toda a dor e privação emocional e física. A personalidade do líder é normalmente magnética, extremamente manipuladora e capaz de fazer verdadeiras lavagens cerebrais. Os seguidores são pessoas carentes, ávidas de um propósito ou orientação e que muitas vezes sofreram abusos repetidos ou traumas – ao contrário do que se diz, não precisam ser estúpidas e até podem ter um nível intelectual muito acima da média.
As ideologias utilizam pressupostos muito semelhantes e utilizam instrumentos de dominação que atuam preferencialmente através da persuasão ou dissuasão. Aqui a divulgação e esclarecimento não são mais do que doutrinação e lavagem cerebral. Num mundo em que as pessoas se sentem cada vez mais perdidas e sozinhas, mesmo nas suas próprias casas e nos seus países, as ideologias conseguem preencher parte desse vazio existencial. Ao moldarem o pensamento de um indivíduo dentro de grupos e movimentos, estão a dar-lhe ideias, convicções e princípios orientadores, a partir dos quais estruturam a sua personalidade, comportamentos e motivações.
Quando normalmente os políticos falam em “reacender o debate ideológico” têm na ideia a clivagem entre duas visões do mundo que são opostas e que resulta num aumento exponencial dos seguidores de ambas. Em todo o mundo estamos a assistir a uma bipolarização maniqueísta sob o argumento de que as ideias moderadas do centro (de esquerda e de direita) são a origem de todos os males da sociedade, desde a corrupção crónica às falhas permanentes da justiça. No entanto, a verdadeira guerra é entre moderados e extremistas. De um lado, a prudência racional e comedida, em análises e reflexões alargadas, com consensos verdadeiros e tendo por base um altruísmo inegociável; do outro lado, a cegueira obediente a pressupostos superficiais, mascarados de ciência, sem limites de meios ou sacrifícios para atingir os fins.
Em Portugal, como resposta aos cinquenta anos ascendentes de uma esquerda cada vez mais diluída no mesmo radicalismo, a direita moderada está a começar a ter problemas de sobrevivência. Tal como em quase todo o mundo ocidental, ou se desloca para a esquerda, ou para novos movimentos de direita exaltada e embrutecida. No nosso caso, o Chega tomou conta dos costumes e a Iniciativa Liberal da economia, dividindo assim o saque entre si.
Estamos portanto num momento decisivo da nossa História local e global. A política é importante porque se trata de quem dirige, colecta e governa os impostos das nações, mas temos de ser frontalmente honestos ao afirmar que é cada vez menos relevante. A consciência global da humanidade tende a ser condutor das políticas locais. O que é realmente fundamental é o pensamento comum de que a liberdade, em todas as suas formas, não é negociável – seja a de refletir ou de agir. Nos últimos anos assistimos à bipolaridade entre histerismos coletivos e cepticismos patológicos. Ao contrário do que nos querem fazer crer, a escolha não é entre dois males: a dependência perante atos aleatórios de tirania e a desconfiança doentia sobre conspirações globais – ambas as visões são cegas, aprisionam os seus seguidores e motivam a cessação de prerrogativas que o mundo ocidental dá como garantidas. A escolha é entre extremismos déspotas e liberdade – que só sobrevive na harmonia entre caos e ordem. Portanto, a democracia ocidental só vai sobreviver se não se colocarem em causa as liberdades fundamentais: de expressão, de imprensa, de existência e coexistência numa sociedade justa e igualitária.