As estatísticas oficiais russas apontam para uma luta preventiva bem-sucedida contra o coronavírus, mas a população não confia muito nesses números e desconfia de que está a ser enganada pelos seus dirigentes. A síndroma de Chernobyl continua viva na Rússia. Tanto mais quando o dirigente máximo, Vladimir Putin, mente sistematicamente.

Numa entrevista concedida à agência TASS e publicada a 17 de Março, Vladimir Putin declarou que, na Rússia, membros da classe média devem ser considerados aqueles russos que têm rendimentos mensais superiores a 17 mil rublos, ou seja, segundo ele, mais de 70% da população.

Qualquer pessoa que conhece minimamente a Rússia sabe que essa quantia, equivalente a 212 euros, não chega para sobreviver.

Uma das razões para chegar a tal conclusão, segundo Putin, é que o salário mensal mínimo em 2019 foi de 11,28 mil rublos, ou seja, cerca de 130 euros.

Isto poderia até ser verdade nalgum país onde os produtos e serviços essenciais fossem baratos, mas isso não acontece na Rússia. Portugal tem um salário mínimo de 635 euros mensais, ou seja, mais de quatro vezes superior ao russo, mas, no nosso país, os preços não são quatro vezes maiores que na Rússia.

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As declarações de Putin surpreenderam de tal forma a opinião pública que os jornalistas pediram esclarecimentos ao Kremlin e o seu porta-voz, Dmitri Peskov, prometeu para mais tarde a fundamentação dos cálculos de Vladimir Putin.

Isto leva também a não acreditar nos dados sobre as dimensões do coronavírus que as autoridades russas apresentam.

Tatiana Golikova, vice-primeira-ministra da Rússia, anunciou, na terça-feira, que o número de infectados com o coronavírus no país é de 114, tendo 104 sido infectados no estrangeiro. Desses, 106 foram afectados “numa forma leve, sem sintomas”. Na quarta-feira o número de infectados subiu para 147.

Segunda ela, este baixo número de infectados deve-se “às medidas que tomámos em Janeiro, antes dos restantes países. Por enquanto, a infecção no nosso país está limitada, mas não podemos relaxar”.

Esta informação seria boa se correspondesse à verdade, mas há razões para cepticismo. Por exemplo, é sabido que o sistema nacional de saúde russo está num estado lastimável e, sem prendas, luvas e subornos, os pacientes não recebem a assistência necessária nos hospitais públicos. O encerramento de aeroportos, fronteiras e outros pontos estratégicos só ocorreu muito recentemente. Moscovo está a ser sujeita a medidas de protecção rigorosas, mas a Rússia não se reduz à capital. Até há bem pouco tempo, no país existiam apenas três laboratórios onde se faziam análises ao novo vírus, mas este já foi detectado em mais de 25 das cerca de 80 regiões e repúblicas da Federação da Rússia.

A este propósito, uma fonte russa dizia-me que “as autoridades têm as estatísticas que lhe são úteis”.

O professor universitário Vladimir Solovey, citando funcionários públicos bem informados, declarou, aos microfones da rádio Ekho Moskvy, que “desde meados de Janeiro já morreram devido ao coronavírus mais de 1 600 pessoas na Rússia” e que o número de infectados “situa-se entre os 130 e os 180 mil”. Segundo ele, nas certidões de óbito as causas da morte são “pneumonias extra-hospitalares” e outras que não estão ligadas ao novo vírus.

É muito difícil, sublinho, avaliar quem estará a falar verdade num país habituado à mentira oficial.

O Presidente Putin tem apelado a que os russos não corram para os supermercados e não açambarquem alimentos e outros produtos de primeira necessidade, mas a população limpa as prateleiras. Um sinal de que os cidadãos não confiam nos seus dirigentes.

Ainda está bem vivo na Rússia e nos países vizinhos o “caso de Chernobyl”, quando as autoridades soviéticas esconderam a verdade durante meses, o que teve consequências catastróficas para a saúde pública. O filme “Chernobyl” ou o livro “Vozes de Chernobyl”, de Svetlana Alekseevitch, mostram muito bem essa situação.

É importante também assinalar que as ideias de que se trata de um vírus trazido do estrangeiro e de que o país faz política de prevenção são duas ideias muito exploradas pela propaganda do Kremlin. É preciso que Putin tenha um apoio massivo na “votação popular” de 22 de Abril para se perpetuar no poder.

Esta crise está a ser um teste à competência das elites, não me refiro só às russas, e, por enquanto, os resultados não são muito animadores. As autoridades comunistas da China mentiram ao mundo, fazendo com que se perdesse tempo precioso para combater a epidemia e, agora, recorre a teorias da conspiração para esconder a sua incompetência. A tentativa de Donald Trump comprar uma vacina alemã apenas para consumo interno é um sinal claro de cinismo de políticos que estão dispostos a tudo para continuarem no poder. A descoordenação da política de saúde, e não só, ao nível da União Europeia é simplesmente vergonhosa

Mas, agora, o principal é travar a epidemia, evitar o pânico, o que só poderá ser conseguido com seriedade e verdade. E, claro está, não nos esquecermos da forma como os dirigentes políticos se comportaram no tempo da pandemia.