Há pouco tempo escrevi um artigo em que fazia a minha declaração de interesses relativamente a Tiago Oliveira, presidente da Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais, pelo que me dispenso de a repetir.
O artigo em causa era, no essencial, uma análise ao relatório que a dita Agência tinha publicado, e que esta quinta-feira foi objecto de uma audição no parlamento, que pode ser vista aqui.
Sobre essa audição, o Observador, com base na agência LUSA, fez uma peça que pode ser lida aqui.
Percebo que a agência Lusa, e o Observador, tenham destacado algumas declarações mais contra-corrente, como a clareza com que Tiago Oliveira diz que temos meios aéreos a mais e que enquanto andarmos entretidos a discutir os meios aéreos ou a falácia do eucalipto, não se discute o essencial.
No entanto, o mais relevante do que foi dito por Tiago Oliveira parece-me ser o facto de constatar como é difícil fazer penetrar o conhecimento que existe, seja no combate, seja na gestão da paisagem, no processo de decisão.
O país tem, seguramente, um problema gravíssimo de avaliação de políticas públicas – Cotrim de Figueiredo, numa boa intervenção, diz que o nome da Comissão de Lições Aprendidas até pode ser bizarro, mas o conceito está absolutamente correcto – e isso traduz-se na persistência de ideias comprovadamente erradas no processo de decisão, a todos os níveis.
Como foi dito, podem mandar-se dezenas de pessoas aos Estados Unidos, ao Canadá, trazer australianos ou chilenos, que é muito fácil encontrar, em posições chave do processo de decisão, quem argumente que são realidades muito distintas e temos pouco a aprender com a experiência de gestão de fogos desses países (procurando bem, haverá, com certeza, quem, tendo responsabilidades em Portugal, ainda diga que resolvia os fogos do Canadá de uma penada, se lhe dessem os meios adequados).
Tal como pode ser, e é, absolutamente pacífico o uso de fogo controlado, incluindo em povoamentos florestais, e a sua consideração como um dos instrumentos mais importantes de gestão da paisagem e do fogo, do ponto de vista técnico e científico, e continuar a ser fácil encontrar entraves burocráticos no seu uso, criados por técnicos para quem o pensamento mágico é mais sólido que o imperfeito sistema científico e de produção de conhecimento que existe.
O que queria realçar neste artigo não é tanto a substância do que foi dito – discordo radicalmente de grande parte das soluções propostas por Tiago Oliveira, apesar de concordar quase inteiramente com os objectivos e o diagnóstico –, mas sim a raridade da postura de Tiago Oliveira entre os altos quadros da administração pública.
Como disse, eu discordo da visão excessivamente estatista de Tiago Oliveira, que acredita que o Estado deve ter o poder de fazer o que acha que está certo, mesmo contra a vontade dos proprietários, depositando uma fé imensa na capacidade da gestão agrupada de propriedades e nos ganhos de escala de gestão.
Tenho uma visão muito mais liberal, acreditando que é pondo rendimento na mão dos proprietários que fazem gestão activa que se consegue aumentar e melhorar a gestão dos terrenos – incluindo ganhos de escala, resolução de questões de propriedade, etc. – mas o facto é que os dois concordamos que provavelmente nenhum de nós está inteiramente certo e tem de se ir aplicando as políticas e medidas que resultarem do processo democrático, avaliando com rigor os resultados, o que nos permite estar, mesmo a partir de visões radicalmente diferentes quanto às soluções, focados nos mesmos objectivos e resultados, sendo muito fácil os dois pormo-nos de acordo em relação a muita coisa concreta.
O que Tiago Oliveira fez ontem na audição a que foi sujeito é verdadeiro serviço público, entendido no mais nobre dos sentidos da expressão: disse o que pensava, baseado em dados tão objectivos quanto possível, sem estar permanentemente a medir se o governo, os senhores ministros, o poder incumbente – como várias vezes referiu os poderes fáticos que vão muito para além do poder político formal – gostariam ou não de cada uma das afirmações que fez.
Francamente, seria isto que eu esperaria dos directores gerais e altos quadros da administração pública, em cada momento, que cumprissem as decisões legítimas de quem tem de tomar as decisões, mas que sejam claros na identificação dos problemas e oportunidades resultantes de cada opção que vai sendo feita.
Actualmente é tão raro ver um alto dirigente da administração pública proceder com tanta liberdade de pensamento e discurso, que gostaria de assinalar este facto, antes que algum político de médio ou alto escalão venha, “por ínvios caminhos”, procurar diminuir a importância de ainda haver quem, na alta administração pública, tenha a liberdade de dizer que temos aviões a mais e não vale muito a pena misturar eucaliptos com gestão do fogo, se queremos fazer alguma coisa bem feita.