Sabes, meu amor, foi há quarenta mil anos. Conhecemo-nos nos primórdios, antes de Adão e Eva comerem a maçã que não era maçã. A memória só resta nos ossos, mas eu lembro-me bem. Ficou gravada como num fóssil.

No nosso tempo não pensávamos em maçãs, nem na proibição do fruto. Vivíamos nómadas, errávamos como perdidos e os animais sustinham-nos e acossavam-nos. Os glaciares nivelavam as planícies e as montanhas. Abríamos a neve e púnhamos as mãos no solo frio, frio, para sentir que vivíamos realmente na terra. Para tocar nas ervas que cresciam queimadas.

Dizia-se que dantes era pior. Que tivéramos sorte. Sorte, sim, se comíamos bisonte. Ao retalhar as refeições, lembro-me de sentir a tua falta sem te conhecer. Afagava o pêlo da caça. Orgulho-me de a minha mão ter sido o último toque que as bestas sentiam.

Isto foi antes de chegares. Não éramos feitos da mesma carne, nem da mesma costela. Entraste na Europa como um triunfo, sem avisar. A tua família partilhou o espaço da minha, e durante milénios, recordo, fomos tolerantes. Havia comida em quantidade.

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Nessa noite, matáramos um mamute. Celebrávamos à volta da fogueira. Apareceste, incomodada com o barulho, a saber o porquê daquela falta de civilização. Tranquilizei-te. Acompanhei-te a casa. Eras linda, vi logo. E quis ver-te sempre.

Tu. Jovem, inteligente, desenvolta. E não falemos do corpo, essa descoberta de prumo em formas novas e perfeitas. Já te disse que eras rectilínea com boas excepções? Uma mulher moderna.

Eu. Perfeitamente adaptado ao meio. Robusto, é certo, mas com pouca capacidade de mudança. Caixa torácica proeminente, nariz largo, sobrolho encrespado. Um homem primitivo.

Não vale esconder que deram nomes às nossas espécies. Tu, Homo sapiens. Eu, Homo neanderthalensis. Agora sei que terias a cultura, o domínio da técnica, a religião. Eu tinha-te a ti.

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Namorámos por centenas de anos, à distância. Pareciam centenas para o meu desejo. As nossas famílias não aprovavam. A tua desprezava-me, a minha desconfiava de ti. Contrapunhas que diferíamos apenas em 0,12% do que somos. «Se tanto», reforçava eu. «Já muito», condenavam, demasiado presos a preconceitos de espécie.

Decidi-me e tu deixaste. Chamei-te minha mulher quando a fome redobrou. A Idade do Gelo persistia, encardindo o mundo de neve e desânimo. Mas que bom o fim do dia, quando fugíamos do frio um no outro. Éramos quentes, éramos quentes.

Percorri quilómetros para te alimentar, mas sem ti eu próprio não teria sobrevivido, porque me faltaria a vontade. Preferia a carne, embora soubesse que tinhas gostos mais refinados e ficavas encantada com o desfazer da uva na boca, ou de truta recém-pescada. Levava-tos sempre que a neve acalmava.

Enquanto a minha espécie passava fome, a tua prosperava. A desconfiança passou a agressão e intolerância. Eu não conseguia reagir. Via os teus próximos expulsarem os meus e lembrava-me de que eram teus pais, irmãos, primos. Tudo o que te dizia respeito devia ser bom. Via os meus próximos expulsarem os teus e lembrava-me de que eram meus pais, irmãos, primos. Tudo o que me dizia respeito devia ser bom.

O sílex deixou de ser arma nobre, de caça. Usámo-lo uns contra os outros. Aparámo-lo pequeno e afiado, ideal para penetrar entre as costelas, directo à conclusão. Percebi que o homem, Neandertal ou moderno, ainda actuava como macaco, e que o polegar oponível nem sempre foi uma bênção.

Fugimos da loucura. Prefiro dizer que rumámos a Sul pela promessa das laranjas. Já levavas o nosso filho. Lá seria melhor para ele.

Porém, a neve também chegara ao Sul. Vivíamos com as mesmas dificuldades e faltava-nos o apoio da comunidade. Surpreendeu-me que comentasses «Aqui é bom», mas agora tomo-o como prova da tua resiliência.

Os anos passaram no quotidiano. Testámo-nos na rotina e fomos sobrevivendo. Tornei-me mais Sapiens e menos Neandertal. E tu mais Neandertal e menos Sapiens.

Depois acabou. Já disse: eras em prumo, rectilínea, amável; eras frágil e susceptível. Um dia não acordaste. Agora que não existes, quero desaparecer. Os cientistas não vão descobrir porquê, mas não é óbvio, meu amor? Extingo-me por ti.