1. Saber ler os sinais na política é um dom avaro. Não sei se a Ciência Política ensina a lê-los, mas devia. Os sábios transformam os sinais num trunfo político, os soberbos nem tanto. Fazem mal.
No nosso céu político alguns sinais aceleraram a sua valsa. O PS acredita porém — e como tal se comporta e exibe — que a generalidade dos portugueses só dança a valsa dos bons sinais, a dessa luz acesa pelo governo, após as trevas trazidas pela coligação anterior.
2. Os votos andam demasiado calados e votos calados são normalmente sinal de desconformidade. Não sei se quem cala o voto o faz por (intencional) alheamento, muda indiferença ou mero cansaço. Sei o que interessa: nem o PS parece ser o porto de abrigo dessa (suposta?) grande onda de felicidade, nem, de momento, o seu “termómetro” eleitoral marca subidas de marés dignas de registo. Não ignoro que nada muda mais rapidamente do que a política e que o PS pode — finalmente — ganhar as próximas eleições. Mas é sobre os sinais deste “ hoje” que agora escrevo. E hoje o PS, colhendo votos, não os colhe ao ritmo do seu transbordante optimismo.
3. O défice-quase-zero tudo permite? O governo acha que sim, comportando-se abertamente como “o dono” — o pior modo da arrogância na política. Qualquer decisão governamental, seja um projecto, escolha de pessoas, medida, etc, cuja fisionomia política suscite a dúvida ou cujos contornos éticos mereçam ser democraticamente questionáveis, é de imediato cortada por um “não tem a menor importância”. Ou então fica a jazer numa altiva — e estéril — mudez governamental e a vida continua: o camarote real socialista a nada se sente obrigado. Os argumentos das oposições e dos discordantes ficam à porta: não contam. Estorvam a glória da narrativa. Contam apenas formalmente para fazer de conta que no parlamento vigora o debate político-partidário saudável, útil, civilizado, que não vigora: a olho nu, a oposição é mais vezes cilindrada pelo uso do desprezo pessoal de António Costa e muito menos pela argumentação governamental contra ela. Tudo isto fervido pela obsessão com o passado de que, misteriosamente, ninguém naquela morada se liberta: qualquer vitória que o governo considere sua é, logo a seguir, velozmente atirada à cara dos antecessores. (Um tique doentio a não ser que o passado incomode mais António Costa e os seus do que a racionalidade política recomendaria. )
4. Hoje, em Portugal, são raros os jovens – vinte, trinta anos – que, não tendo fortuna pessoal sólida, ou não sendo super-protegidos pelas suas circunstâncias familiares, estejam em condições de fundar uma família, comprar uma casa, iniciar nova etapa, crescer na vida. Péssimo sinal, já que falamos de sinais e de os saber ler. E péssima radiografia que as Web Summits, o défice zero, as movidas, a cintilação do sucesso, o país das capas das revistas internacionais, não apaga. Não cometeria a imbecilidade de achar que a culpa é deste governo, a nossa circunstância é o que é, e o país está cada vez mais pobre. Mas, se as coisas são o que são, o Governo, os socialistas, a geringonça, a esquerda, longe de serem excepcionais e não tendo salvo o país de absolutamente nada, distribuem ilusão e ilusões como se elas fossem “sustentáveis”. Pode chegar um dia, mesmo que não seja amanhã, em que a descoincidência entre a ficção governamental e a realidade nacional faça ouvir a sua voz: parece-me difícil que um jovem que legitimamente aspira a uma vida “dele” e “feita” por ele, se deixe acalentar por novela tão rosada quando, pela enésima vez, não consegue casa, nem orçamento, nem um futuro por aí além; que a classe média possa indefinidamente arcar com esta mochila fiscal, directa ou indirecta, cujo resultado lhe nivela a vida pela “cepa torta”, ao vetar-lhe qualquer legítima ambição; que o tecido empresarial — pulmão económico de um país que não cresce há mais de uma década, seja incompreensivelmente secundarizado pelo poder, apesar de promessas e garantias; que os empresários estejam tão empolgados com o novo Orçamento quanto os seus auto-empolgados autores; que as populações do centro do país — para descer ainda mais ao quotidano mais trivial – sintam grande afinidade com as autoridades políticas ou administrativas após terem sido inconcebivelmente abandonadas por todas elas, aquando da tempestade Leslie; que quem espera a casa prometida há mais de um ano, após os fogos de 2017, ainda não a tenha, apesar de discursos emocionados, visitas televisionadas e banhos estivais na zona (só uma magra percentagem do total prometido está construído ).
5. Que, que, que.
6. Mais do mesmo? Enquanto as coisas forem as coisas esvoaçantes que são, sim. Mais do mesmo.
P.S.: Num banal voo entre duas cosmopolitas cidades europeias um gémeo de Bolsonaro, com o gesto e verbo descontrolados, insultou uma mulher de cor, sentada ao seu lado no avião: fê-lo por ela ser negra e falar “estrangeiro”. Não sei o que é pior: se este eloquentíssimo sinal de um tempo que veio para ficar; se um comandante de uma companhia aérea europeia que acha “normal” — que se saiba — não intervir face ao obsceno comportamento do passageiro. Se não podia apeá-lo (custa caro), deveria exemplarmente tê-lo posto a bom recato no avião, “à parte”, como se estivesse possuído de um mal contagiante. Ao contrário, foi a mulher que pressurosamente foi mudada de lugar. A tripulação não pestanejou — a cena teve como interveniente um único membro fardado — o comandante calou. O voo seguiu o seu destino. Não fora a filmagem de um passageiro e esta indecência nunca tinha existido. Eis o que nos espera.