A sabedoria ancestral, telúrica ensina-nos uma verdade fundamental: para colher é preciso, semear, preparar o terreno, separar o trigo do joio, isto é, longo, atento e persistente trabalho. Daí a sedução da parábola do Semeador nos três evangelhos sinópticos, de Mateus, Marcos e Lucas e no evangelho apócrifo de Tomé. Marcou não só os discípulos como a nossa Cultura. E chegou ao século XXI, mesmo com a aceleração do tempo histórico, as maiores necessidades dos humanos que desafiam as leis e o equilíbrio da Natureza. Na Política, foram a herança greco-romana, o Renascimento e Iluminismo e a revolução da Ciência e da Tecnologia marcaram o nosso tempo histórico e o exercício da Polis. Não dispensa Tempo, uma commodity, isto é, um valor social e económico, que parece arredio do debate público, dominado pela espuma dos dias, pelo slogan e o soundbyte que capta a imaginação do cidadão, como se num passe de mágica, tudo e o seu contrário fossem possíveis na vida da Cidade! Apocalipse do Serviço Nacional de Saúde? Mortes previsíveis responsabilidade da tutela política? Nós, cidadãos, merecíamos outro rigor, outra seriedade na análise dos problemas, afinal é também dos nossos impostos que parece financiarmos o bom e também estes dislates!

Sejamos claros e objectivos:

Apocalipse do SNS? Não, nem sequer se pode equacionar tal realidade. Os portugueses têm um Sistema de Saúde, dominantemente público e também privado que lhe proporciona resposta aos seus problemas, mais ou menos complexos.

SNS destinado a ser um Serviço de Necessidade para os desfavorecidos económicos? Nem pensar nisso. E o trabalho notável, onde os serviços do SNS são escolha e referência pela qualidade do serviço que prestam, pela complexidade dos casos, na intervenção terapêutica cardíaca e vascular, nas doenças neurológicas, na transplantação, na oncologia e em tantas outras áreas onde as suas instituições e os seus profissionais se distinguiram nacional e internacionalmente. Mencioná-los encheria páginas, para além do que me é permitido…

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Fuga de cérebros e competências do SNS? No fluxo e refluxo, reconheço que nos 46 anos de trabalho no SNS (1970-2016) esta última década marcou um novo sentido no movimento dos profissionais. Mas sejamos claros: houve sempre, duplo trabalho, no serviço público e no privado, dos médicos, dos enfermeiros, dos técnicos, normalmente para melhorias salariais e, às vezes, para melhor realização profissional. E não era exclusivo português. Encontrei esta realidade nas minhas andanças pelo mundo da Medicina, na Europa e nas Américas. Nesse período, havia um princípio: prevalência do serviço público. Essa foi uma realidade que mudou, perante um novo paradigma: o sector privado cresceu, desenvolveu-se, tornou-se competitivo com o SNS, perante o imobilismo deste e o conservadorismo da sua política de recursos humanos, mais acentuado na última década, não desde Abril de 2024! Em Portugal, como noutros países com igual modelo organizacional.

Persistiram equívocos na perceção pública sobre os problemas da Saúde. Muito se tem escrito e tentado esclarecer, mas persiste um diálogo de surdos, sem resultados. E tem décadas. Analisemos o mais premente que dominou o debate público nesta 1.ª semana de Agosto – a questão da Urgência de Obstetrícia, área que me ultrapassa, mas sobre a qual, como médico e cidadão empenhado, devo refletir.

O problema existe com acuidade pública há pelo menos duas décadas, primeiro nas grandes cidades e agora com maior impacto nacional. As causas parecem-me múltiplas. Primeiro, pela política de recursos humanos: o Ministério da Saúde, ignorou avisos dos Médicos e da sua Ordem, sobre a necessidade de planeamento das vagas para as especialidades com maiores carências, entre elas, a Obstetrícia. E não é problema exclusivamente português. Segundo, porque se hesitou, tergiversou e claramente não se fizeram as restruturações necessárias. Lembram-se dos esforços do Ministro Correia de Campos e como a política lhe pôs cobro? O Ministro, naquele assunto, tinha razão… há quase 20 anos! Curiosamente, foi na sequência da inauguração da maternidade reestruturada do Santa Maria que os alertas foram mais dramáticos e responsabilização apontada à tutela para mortalidade eventual que venha a acontecer! Sem palavras….

Permita-me caro leitor uma pequena história que se contava sobre Aneurin Bevan fundador do NHS (National Health Service) e sobre a responsabilidade do ministro neste modelo de organizações: um vaso de cama cai em Aberdeen(cidade do norte da Escócia) e ressoa em Whitehall(centro do governo em Londres). Problema das organizações excessivamente centralizadas e muito dependentes duma hierarquia administrativa, mesmo para as decisões mais simples.

Discutir como ultrapassar as dificuldades na Obstetrícia, não é a minha praia! Mas sei que requer planeamento, reestruturação de serviços, distribuição inteligente de recursos humanos pelo País, proximidade de recursos qualificados de acordo com as regras de Boas Práticas. Perdeu-se tempo e oportunidades? Óbvio que sim, e a responsabilidade tem vários e diversificados progenitores e … tem Passado!

Vejamos, para terminar, a informação colhida nos dados da Pordata. A mortalidade peri-natal foi de 31.8/1000 em 1975 e 3/1000 em 2023 e a mortalidade neonatal 22.1/1000 em 1975 e 1.6/1000 em 2023. A mortalidade materna por 100 000 nascimentos foi 42.9 em 1975 e 8.8 em 2021. Na 1.ª década do século XXI oscilou entre 6.2 e 7.9 e teve um agravamento de 2017 a 2019 em que oscilou entre 12.8 e 10.4 e um pico de 20.1 em 2020 (efeito da pandemia?) e voltou a reduzir para 8.8 em 2021 (Fig1):

A Pordata não tem disponíveis os dados de 2022 e 2023, nem encontrei relatórios oficiais com dados de mortalidade materna referentes a 2022 e 2023. O que estes números demonstram são os resultados excelentes que, nesta área, o Sistema de Saúde Português, do qual o SNS foi determinante. Por isso creio que foi, é e continuará a ser a coluna vertebral do Sistema e garante de acesso, equidade e qualidade na prestação de serviços. Comprou serviços necessários às Maternidades privadas certificadas? E porque não em situação de necessidade? Parece que foram 45 (?) casos nos últimos meses (<10% do total)… E se a necessidade obrigasse a mais? Não era preferível aos riscos de transporte e parto na ambulância? Parabéns às equipas que souberam lidar com a situação – chama-se competência e treino. Será que as maternidades privadas também estão lotadas? Não terão vagas disponíveis? E houve planeamento das férias tendo em conta necessidades previsíveis?

A questão da Urgência Obstétrica tem uma lição exemplar: há uma Oportunidade de fazer, de realizar, se não for aproveitada escapa-se como a areia entre os dedos. Governar, não é exercício fácil, requer determinação, coragem e fortitude, um conceito muito british cuja tradução não é fácil, talvez misto de conhecimento, coerência, coragem e carácter e exige talento para a gestão do Tempo e da Oportunidade! E há uma história que convém conhecer para que não se repitam os mesmos erros. Há um Passado, responsabilidades e a irredutibilidade de posições sempre serviu exacerbação dos corporativismos nas múltiplas tribos da Saúde, mas raramente conduziu a bom porto. Não tenho nenhuma experiência de Política, mas o que aprendi do exercício de responsabilidades públicas é que há um Tempo para pensar e agir, que o diálogo construtivo e sério é indispensável e que a realização do Bem Comum é a bússola. E o Tempo é essencial para que a sementeira frutifique e colheita seja compensadora!

Qual será o futuro do SNS? As relações com os outros parceiros para a construção efectiva e operacional do Sistema de Saúde ao serviço dos cidadãos e a política de recursos humanos são aspectos que analisaremos em artigos próximos.