Os ventos actuais não são propícios à afirmação da virgindade física de Maria. Vários são os teólogos que até afirmam a sua virgindade espiritual, mas vacilam quando se trata de afirmar a virgindade física da Mãe de Deus. O que estará na base desta dicotómica separação? Em primeiro lugar cabe dizer que na cultura actual, onde a sexualidade biológica é exaltada até à sua máxima potência, a virgindade humana não só não colhe boa imprensa, como até aparece como uma categoria própria de atrasados mentais, que acreditam em mitologias conotadas com a “idade das trevas”. Nesta cultura, portanto, parecerá pouco ilustrado, e até anticientífico, defender a virgindade física de Maria, razão pela qual a quem pretenda afirmar-se como detentor de um pensamento progressista não lhe restar outra alternativa credível senão a de negar, velada ou explicitamente, essa virgindade física, remetendo-a para o baú das velharias a descartar.
Apesar da virgindade física, juntamente com a virgindade espiritual, de Maria constituir uma parte integrante da dogmática cristã, não é novidade exclusiva do nosso tempo a tentativa da sua negação, já que ela foi surgindo ao longo dos séculos e, na Modernidade, ganhou raízes na chamada teologia liberal do século XIX, a qual pretendia ajustar a teologia ao positivismo exacerbado desse tempo. Já no século passado, Eduard Norden e Matin Dibelius procuraram derivar a narração do nascimento virginal de Jesus a partir das narrativas da história das religiões, nomeadamente do nascimento dos faraós egípcios. Por outro lado, na senda do programa teológico de desmitologização de Rudolf Bultmann, algumas teologias feministas recentes puseram também em causa a virgindade física de Maria.
Contudo, a Igreja ensina reiteradamente a virgindade de Maria, como sendo simultaneamente espiritual e física. E não poderia ser de outro modo. Na sua sabedoria milenar, a Igreja teceu várias fórmulas dogmáticas de grande calibre racional, nomeadamente a equilibrada fórmula do Concílio de Calcedónia, do ano 451, que afirma a completa unidade da dupla natureza de Cristo, humana e divina, “sem confusão e sem separação”. A mesma fórmula pode perfeitamente ser utilizada para outros binómios em que a Igreja é confrontada com a possibilidade de escolha entre duas alternativas, optando ela, clara e decididamente, pela manutenção da conjunção dessas duas alternativas e não pela sua disjunção, como, por exemplo, entre a fé e a razão, Deus e o ser humano, o natural e o sobrenatural, o espiritual e o carnal, a virgindade espiritual e a virgindade física, etc., embora mantendo também uma clara assimetria entre os dois polos de cada um desses binómios.
Dado que a virgindade de Maria é afirmada claramente nos escritos evangélicos, não é de estranhar que já os Padres apostólicos, como Santo Inácio de Antioquia, os apologistas, como São Justino, o filósofo, e os controversistas, como Santo Ireneu, tenham sublinhado que esta verdade pertence à fé da Igreja. Os documentos dogmáticos do magistério da Igreja atestam também, desde muito cedo, essa mesma verdade de fé. No chamado Símbolo Apostólico, dos começos do século III (215?), mas que depende de uma fonte anterior, já se distingue entre a concepção virginal de Jesus (com origem na obra do Espírito Santo), concepção essa afirmada ser “sem sémen masculino” e o parto virginal (o seu nascimento da Virgem Maria). A explicitação do dogma da virgindade de Maria foi crescendo à medida que surgiram as controvérsias. No século IV surge a expressão “sempre virgem”, adoptada pelo II Concílio de Constantinopla (553), aparecendo também a fórmula ternária “antes do parto, no parto e depois do parto”, para responder a algumas heresias que negavam este último, fórmula que será vertida nas actas do III Concílio de Constantinopla (680). Na Idade Média reafirma-se a virgindade perpétua de Maria, nomeadamente com Agostinho e Tomás de Aquino, o mesmo fazendo os grandes teólogos do século XX, como o jesuíta Karl Rahner e o Papa Bento XVI.
Que pretende a Igreja afirmar com o dogma da virgindade de Maria (e também com os outros três dogmas marianos: Maternidade divina, Imaculada Conceição e Assunção ao Céu de Maria)? Na verdade, trata-se de uma afirmação sobre Cristo e sobre a Igreja, ligada à maternidade divina. Ao afirmar que a Mãe de Deus é sempre virgem, concebendo sem o concurso de varão, está afirmar a divindade de Cristo e que Deus é o seu Pai e, simultaneamente, que Cristo é verdadeiramente homem da nossa raça. Põe também de manifesto o dogma que a entrada de Deus no mundo não depende da vontade da carne, nem das forças humanas, mas da intervenção directa de Deus, sem concurso de varão, e com a colaboração da entrega total, livre e fiel à vontade amorosa de Deus, que torna Maria virgem, isto é, terreno plenamente disposto para a actuação plena da graça de Deus, que fecunda e gera Cristo incarnado. Põe ainda de manifesto o dogma “a disposição da Virgem a manter-se aberta, sem reserva, nem condição alguma, em tudo e sempre, à santa vontade de Deus… quando diz: ‘eis a escrava do Senhor’” (K. Rahner, Maria, Mãe do Senhor).
Por isso, Maria, Virgem e Mãe, é a Nova Eva, através da qual Deus dá início a uma Humanidade Nova, nascida não da carne, mas da fé na vontade de Deus. Maria é, assim, também, figura da Igreja (e de todos os crentes), que na fé em Cristo, Palavra eterna de Deus, gera os filhos de Deus. Por outras palavras, na maternidade virginal de Maria ressoa a maternidade da Igreja, que também gera filhos (Lumen Gentium, 64) em Cristo pelo poder do Espírito Santo. A afirmação da virgindade perpétua de Maria inclui os sentidos teológico e biológico, que se devem, portanto, manter “unidos, sem confusão e sem separação”.
Agostinho lembra (em De Sancta Virginitate) que Maria é virgem porque concebeu primeiro no seu coração, pela fé, em total abertura e entrega à graça divina, concebendo só depois no seu seio. Ou seja, a virgindade em Maria é primariamente uma disposição livre e íntegra do seu coração imaculado, que respondendo na fé ao amor gratuito e misericordioso de Deus, não colocou a mais leve sombra de resistência ao desígnio divino, para ser, derivadamente, uma adesão do corpo, o qual receptivo também à graça, acompanhou o coração. É que em Maria, a “cheia de graça”, tudo, no seu acto de resposta livre à graça divina, aparece perfeitamente em estreita sintonia e unidade: espírito, alma e corpo, sem esquizofrenias de espécie alguma. Em Maria concretiza-se, pois, a resposta plena e total da humanidade à graça de Deus, que é recebido totalmente, no coração e no seio da “cheia de graça”. A virgem Maria tem, por isso, um lugar especial na história da humanidade e da Igreja, pois Ela é não só a resposta humana mais completa à iniciativa de Deus de desposar a humanidade, inaugurando o início de uma Nova Humanidade redimida por Cristo, como é também o modelo daquilo que a Igreja e toda a humanidade está chamada a ser e a viver, enquanto resposta a Deus pela livre adesão a Ele, através da fé.
Não é difícil compreender, até humanamente, o alcance da entrega de Maria a Deus, isto é, da sua virgindade, simultaneamente espiritual e corporal. Na verdade, o exemplo do amor humano já exige que a entrega e o acolhimento amoroso exclusivo, ou seja, virginal, entre, por exemplo, marido e esposa, sejam também uma entrega e acolhimento amoroso total, isto é, de “corpo e alma”, já que a entrega em espírito arrasta também a entrega corporal; e quando o espírito de um dos elementos do casal não se entrega totalmente ao outro, o corpo também não se entrega. Exemplo análogo poderia ser retirado da vida sacerdotal e religiosa, pois quando alguém decide livremente entregar-se religiosamente a Deus, essa entrega é também total, simultaneamente espiritual e corporal, sem esquizofrenias entre o espírito, o corpo e a alma.
Dessa mesma forma argumenta o jesuíta Karl Rahner, um dos maiores teólogo do século XX:
Como perfeita redimida, Maria é absoluta unidade – não identidade! – de espírito, corpo e alma. Nela, tudo é resumido no acto da sua entrega pessoal a Deus. Nela, encontramos a perfeita integração de todo o momento da sua existência. O acto do amor de Deus é completamente bem sucedido em Maria. Nela, eleição pela graça e abertura à graça são uma só unidade. (…)
Portanto, Maria é tanto a Mãe de Deus que concebeu a graça incarnada de Deus corporalmente no seu seio como, simultaneamente – porque na sua concepção e acto pessoal, espírito e corpo, pertencem juntos a uma inseparável unidade – é Aquela que (…) respondeu a Deus com o seu fiat (…). Ela concebe a Palavra … simultaneamente na fé, no coração e no seio. (SpiritualExercises)
E noutro texto, advoga o mesmo teólogo que se o Filho incarnado não quis ter pai terreno foi para que aparecesse claramente que Ele procede por completo da disposição de Deus e não do mundo,
não porque o mundo seja mau ou porque o matrimónio não seja uma instituição estabelecida por Deus (…), mas para que se manifestasse que n’Ele se interrompe o curso terreno do mundo (…). É do alto que cai imprevisivelmente a misericórdia de Deus: o nascimento do Filho, (…) puro efeito da livre acção de Deus… Maria põe-se à disposição desta acção de Deus. E entrega-se de tal maneira que (…) é a Virgem, porque Ele não é deste mundo, mas do alto. (…)
A virgindade de Maria e o nascimento sem cooperação paterna são a mesma coisa (…). Deus não pode ser forçado a descer até nós …, mas só O podemos receber como graça, que se oferece a si mesma de um modo inexpressavelmente livre. Uma realidade semelhante devia imprimir-se não somente na mente e no coração de Maria, mas também em todo o seu ser e corporeidade. Tinha que aparecer na sua existência física como fenómeno e representação. Por essa razão, Ela é virgem de espírito e corpo, excepcional em todo o plano de Deus. Pelo facto de que em toda a sua existência …, desde a sua concepção até à sua morte, Ela se encontra inserida na sua missão de ser Mãe do Senhor, consagrada a este único destino, por isso mesmo Ela permanece virgem … enquanto recepção obediente da graça. E não só o é antes da concepção do seu divino Filho, mas também depois, pois Maria é e permanece a mesma coisa: a pura receptividade à livre graça do alto, pela qual devia representar a virgindade não só como a sua forma de ser pessoal, mas como imagem exemplar e fecunda da Igreja, estabelecendo um novo estado no seio dela. (…) Maria converteu-se no protótipo da virgindade cristã …, a virgindade consagrada a Deus, que segue os passos de Maria, a virgem santa. (…)
A virgindade de Maria diz algo muito importante a todos os cristãos. Antes de tudo como espera, disponibilidade e receptividade à graça do alto, como consciência de que o definitivo é graça e só graça, que cada cristão deve viver como uma disposição interior (…). Pois, no fim de contas, nós não realizamos a nossa salvação pelas nossas próprias forças (…). Só quando nos colocamos diante de Deus com esta disposição de virgindade, quiçá estéril aos olhos do mundo, somos verdadeiramente cristãos. (Maria, Mãe do Senhor)
Compreendemos, assim, que a entrega de Maria a Deus tenha igualmente sido total e íntegra, em união total de espírito, corpo e alma, sem esquizofrenias nem egoísmos de espécie alguma. E assim, Maria concebe o Verbo Incarnado, simultaneamente na fé, no coração e no seio.
A virgindade de Maria, espiritual e física, não se opõe à racionalidade humana, mas faz parte da intervenção directa de Deus no Cosmos e na história humana, pela sua incarnação. Sendo um “fenómeno” irrepetível, não entra no conjunto de fenómenos que podem ser estudados pelas ciências naturais, esses sim, repetíveis e quantificáveis.
Padre jesuíta e Professor da Universidade Católica Portuguesa, Braga