É compreensível que a interminável novela do Brexit esteja a irritar as pessoas e a contribuir para radicalizar a oposição entre Remainers e Brexiteers (no Reino Unido e fora dele). Mas o radicalismo não é em regra bom conselheiro. Uma certa dose de cepticismo moderado, como diriam David Hume, Adam Smith, Edmund Burke, ou Alexis de Tocqueville, nunca fez mal a ninguém.

Encontrei um exemplo de saudável cepticismo moderado num artigo de Vernon Bogdanor no Telegraph de sábado, cuja leitura enfaticamente recomendo. O autor é hoje professor no King’s College London e era Fellow do St. Antony’s College, Oxford, nos tempos remotos em que eu por lá andei.

Bogdanor é um “Remainer”, como ele diz no último parágrafo do artigo. Mas todo o texto antes desse parágrafo levaria a pensar, por padrões continentais, que ele era um “Brexiteer”. O autor procura explicar os motivos da relação peculiar do Reino Unido com a Europa continental. Não posso resumir aqui o argumento. Mas terei de referir que ele recorda que, no Reino Unido, não houve Revolução Francesa de 1789 (nem as suas sequelas), nem as chamadas “revoluções liberais” de 1848, nem certamente o bolchevismo de 1917, ou o fascismo de 1922, ou o nacional-socialismo de 1933 — todos eles com profundo impacto no continente (cujos detalhes caseiros me dispenso de recordar).

Não é aqui o lugar para estudar esta especificidade britânica, na verdade uma especificidade dos povos de língua inglesa, que tenho procurado investigar noutros lugares. Mas um ponto no argumento de Vernon Bogdanor chamou particularmente a minha atenção:

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“As profundas diferenças entre a Grã-Bretanha e o Continente, associadas à sua história evolucionária [i.e., não revolucionária] estão reflectidas no conceito de soberania do Parlamento, um conceito estrangeiro na Europa continental, e que deve ser distinguido de soberania nacional, com o qual é frequentemente confundido.”

Esta passagem atingiu a minha memória como um relâmpago. Há muitos anos, mais do que seria conveniente enumerar, cheguei a Oxford para um programa de doutoramento sob orientação de Ralf Dahendorf (por recomendação de Karl Popper, de quem Dahrendorf tinha sido aluno na LSE, antes de se tornar seu director). Dahrendorf era um alemão/britânico de centro-esquerda [‘Esquerda Liberal’, era o termo usado entre nós, em Lisboa], que tinha integrado na Alemanha um Governo de coligação entre sociais-democratas e liberais, depois integrara a Comissão Europeia em representação da Alemanha (quando negociou com empenho a adesão britânica à CEE). Estava genericamente associado aos Liberais alemães e, depois, aos Liberais-Democratas britânicos, além de uma distinta carreira académica independente.

Tive seguramente muitos “choques culturais” em Oxford, alguns dos quais é difícil definir exactamente. Mas sei seguramente qual foi o meu primeiro “choque cultural” conscientemente registado enquanto tal. Foi com Ralf Dahrendorf acerca da União Europeia (que, in the good old days, se chamava ainda Comunidade Europeia).

Estávamos num debate sobre o projecto europeu, no European Studies Centre do St. Antony’s College., no primeiro trimestre do ano académico de 1990/1991 (Michelmas Term, é assim chamado em Oxford).  Dahrendorf presidia ao debate. Todos os oradores atacaram veemente o euro-cepticismo de Margaret Thatcher. No final, surpreendentemente, Dahendorf saiu em defesa enfática de Thatcher (ainda que com algumas diferenças).

Disse ele que a soberania do Parlamento era um distintivo britânico que tinha protegido o Reino Unido das revoluções e contra-revoluções continentais. E que esse conceito de ‘soberania do Parlamento’ não tinha nada a ver com ideias continentais sobre nações fundadas na raça ou na religião [o conceito de ‘soberania nacional’ de que fala o artigo acima referido de Bogdanor]. O Estado-nação que serve de base à soberania do Parlamento britânico, prosseguiu Dharendorf, é um estado-nação multi-étnico, fundado na liberdade de religião (ainda que possa naturalmente ter uma religião dominante, até oficial, com alguma excentricidade…). E que a Comunidade Europeia era um projecto louvável — desde que não quisesse hostilizar a soberania dos Parlamentos nacionais.

Lembro-me de ter ficado perplexo. Julgava ter aprendido em Lisboa, e nos autores franceses que na altura se liam por aqui (o que não era o caso de Raymond Aron, que tinha sido amigo de Dahrendorf), que a escolha residia claramente entre europeísmo supranacional e nacionalismo reaccionário. Mas Dahrendorf não era obviamente um reaccionário, era um liberal. Mas também não era um europeísta supranacional (‘europeísta céptico’ era a expressão que gostava de usar, para se distinguir dos ‘euro-entusiastas’ e dos ‘euro-cépticos’). E era um acérrimo defensor da soberania dos Parlamentos nacionais.

Discuti vigorosamente este assunto com ele inúmeras vezes, nas tutorias quinzenais que tínhamos à hora do chá, (que era imperturbavelmente servido, o que, só por si, moderava algum excesso do meu vigor juvenil). Intrigado, resolvi levar o tema a Karl Popper, que eu visitava em sua casa, em Kenley, ao sul de Londres, pelo menos uma vez por trimestre. Popper deixou-me ainda mais perplexo. ‘Sim, a cooperação europeia é muito interessante, mas a questão fundamental é manter a soberania dos Parlamentos nacionais, nas quais a democracia se funda. Se os nossos parceiros europeus não quiserem manter a soberania dos Parlamentos deles, eu faço votos de que aqui seja mantida a soberania do Parlamento britânico’.

Lembro-me de que senti com profundo respeito — e profunda auto-interrogação — esta espontânea sintonia entre a reverência de Karl Popper e de Ralf Dahrendorf pela ‘soberania do Parlamento britânico’ . Sir Karl, tal como Lord Dahrendorf, não era nativo britânico, era um exilado austríaco que adoptara a cidadania britânica (mantendo a austríaca, tal como Dahrendorf mantivera a alemã).

Levei este tema a uma longa entrevista que tive em 1994 com outro antiquado liberal exilado nas Ilhas Britânicas — Sir Isaiah Berlin, nascido em Riga, na Letónia, em 1909. Quando lhe perguntei o que pensava da União Europeia, ele respondeu secamente: ‘se for para abrir portas de escolha e de concorrência, tudo bem. Se for para criar uniformização centralizada, tudo mal’.

Perguntei-lhe a seguir o que pensava do “nacionalismo britânico” que se exprimia nas críticas de Thatcher a Bruxelas. Sir Isaiah ficou indignado e quase saltou na cadeira: “nacionalismo britânico, nacionalismo britânico?!!! A Grã-Bretanha nunca foi nacionalista! Foram aqui recebidos exilados políticos de todos os países do Continente — entre os quais me incluo.” Foi entretanto buscar inúmeros livros de autores continentais, de esquerda e de direita, que encontraram asilo político no Reino Unido (muitos dos quais eu nem sequer conhecia). E depois falou de Karl Marx (sobre o qual ele escrevera uma biografia intelectual):

“Marx escreveu O Capital na Biblioteca Britânica, sem ninguém o incomodar. Mas queixava-se de que os ingleses não o levavam a sério. Seguramente. Marx nunca foi levado a sério neste país. Mas, no continente, era perseguido pela polícia. Neste país, a soberania do Parlamento britânico garantiu-lhe a liberdade.”

Todos estes episódios, de que dei conta mais detalhada na época, nas minhas crónicas semanais no jornal Público, ficaram para sempre na minha memória. Muitas delas estão publicadas num livro de 2008, com muito amável Prefácio de José Manuel Durão Barroso, que muito me honrou. São estes episódios que me aconselham a ter hoje um olhar céptico e moderado relativamente às apaixonadas discussões sobre o Brexit.