Durante os últimos 16 meses todos nós temos visto os nossos direitos, liberdades e garantias suspensos e violados de forma a combater a pandemia de SARS-CoV-2. Não venho aqui debater a proporcionalidade e adequação das medidas adoptadas, a problemática que necessita ser discutida é se as instituições políticas portuguesas violaram os limites ao seu poder impostos pela Constituição da República Portuguesa. A história de um curto artigo da lei 1/A-2020 de 19 de Março ilucida-nos sobre o golpe de Estado jurídico em curso. Isto permanece obscuro na nossa esfera pública porque todas estas decisões são feitas à salvaguarda do típico “legalês” burocrático.

Como alguns de nós ainda se lembrarão, o primeiro estado de emergência do Portugal pós-Constituição de 1976 foi declarado a 18 de Março de 2020. Na concessão de poderes ao Governo pelo Presidente e pela Assembleia foram suspensos vários direitos (incluindo o direto à resistência, o direito à manifestação, entre outros) durante um período de 15 dias. Até aqui, tudo de acordo com a Constituição portuguesa. Mas no dia seguinte foi aprovada uma lei cujo artigo 2 regia o seguinte: “O conteúdo do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, é parte integrante da presente lei, produzindo efeitos desde a data de produção de efeitos do referido decreto-lei.”. Através desta linguagem confusa, este artigo declarou o começo efectivo do estado de emergência num decreto do Governo de 13 de Março. Isto tem três implicações principais:

  1. O limite de 15 dias do estado de emergência foi imediatamente violado ao ser estendido para 20 dias por este ter começado 5 dias antes da sua declaração oficial;
  2. O impedimento constitucional à criação de leis com efeito para o passado estava suspenso;
  3. A criação de leis com efeitos retroactivos – algo que não é permitido constitucionalmente e que não foi concedido na declaração do estado de emergência – representa a suspensão de todos os direitos constitucionais susceptíveis de suspensão durante o estado de emergência.

Se o leitor ainda não está preocupado com esta violação da Constituição da República Portuguesa, a situação tornou-se mais grave alguns dias depois. A 30 de Abril, quando se decidiu não renovar o estado de emergência, recorrendo em vez disso ao regime de situação de calamidade, decidiu-se em simultâneo não suspender o estado de emergência. O enquadramento jurídico desta situação de calamidade é claro: “Nos termos dos artigos 12.º e 13.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, na sua redação atual, por força do disposto no artigo 2.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na sua redação atual, do artigo 17.º da Lei n.º 81/2009, de 21 de agosto, na sua redação atual, do artigo 19.º da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, na sua redação atual, e da alínea g) do artigo 199.º da Constituição, o Conselho de Ministros resolve (…)”. Para o leitor menos familiarizado com o legalês português, o artigo que estendeu o estado de emergência para o dia 13 de Março serve novamente para estender o estado de emergência e consequente suspensão de direitos, liberdades e garantias para além do período permitido constitucionalmente. Desta vez, não para o passado, mas para o futuro. Através do apelo ao Artigo 2, toda a legislação pós-estado de emergência assume poderes de suspender a Constituição sem cumprir os requerimentos constitucionais para o fazer (isto é, sem declarar oficialmente o estado de emergência).

Infelizmente, não vou terminar este texto com uma mensagem de esperança. O que apresentei aqui não é apenas uma recordação triste dos primeiros meses de combate à pandemia. Não se trata de medidas acidentais implementadas enquanto se improvisava tão depressa quanto se podia. A declaração de situação de calamidade de 9 de Junho de 2021, a mais recente, baseia-se exactamente na mesma formulação: “Nos termos dos artigos 12.º e 13.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, na sua redação atual, por força do disposto no artigo 2.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na sua redação atual, do artigo 17.º da Lei n.º 81/2009, de 21 de agosto, do artigo 19.º da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, na sua redação atual, e da alínea g) do artigo 199.º da Constituição, o Conselho de Ministros resolve (…)”. (Lei 74/A-2021 de 9 de Junho). Deste modo, a Constituição que esteve em vigor até Março de 2020 foi revogada e este apelo ao artigo 199 (competências administrativas do Governo), alínea g, corresponde meramente a uma tomada de plenos poderes por parte do Governo.

Os puristas do Direito certamente rejeitarão que o estado de emergência mantém-se em vigor desde Março de 2020. Não lhes nego o direito de ter uma opinião problemática e, provavelmente, errada. No entanto, é bastante mais difícil afirmar que o Artigo 2 e toda a legislação que se tem sustentado nele não tem violado sucessivamente a Constitutição que esteve em vigor até Março de 2020. A única forma não contraditória de ter a Constituição suspensa sem ter um estado de emergência é se estiver um golpe de Estado em curso. Escolham qual preferem.

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