O peso que o combate ao SARS-CoV-2 tem tido nas nossas vidas tem trazido ao de cima os dilemas do nosso tempo. Esses dilemas trespassam a situação contemporânea e revelam o cerne duma modernidade que já não reconhece a validade de projectos alternativos. É desta forma que se pode perceber que as questões hodiernas não são meramente de saúde, nem legislativas, nem sequer de corriqueira discórdia política. São as questões fundamentais que sustentam a nossa existência em conjunto. Na era contemporânea a indeterminação da terminologia política tornou-se extremamente premente, mas a prática política ignora ou finge ignorar esse facto concreto. Avanço alguns exemplos.

Em Setembro de 2020 a polícia inglesa utilizou violência para dispersar uma manifestação contra as medidas para combater a pandemia “depois de milhares de pessoas terem resistido a seguir o seu conselho” para o fazerem. Que género de conselho leva à utilização de força quando não é seguido?é este que se não seguido é imposto pela força? Uma resposta convencional seria dizer que foi uma ordem e não um conselho. Na realidade, isto expressa uma indistinção entre conselho e ordem, autoridade e poder, legalidade e legitimidade, que atravessa todas as áreas da sociedade. Todos os poderes, policial ou outro qualquer, recusam reconhecer que não encarnam todos os poderes em simultâneo e agem com base nisto.

O papel que os cientistas e comunicadores para a ciência têm assumido na promoção das medidas implementadas reflecte uma situação idêntica. Eles não aparecem na praça pública a informar sobre a evidência e investigação pública, mas a promover as medidas. Confundindo o seu papel de conselheiros por aquele de promotores de decisões políticas. Um exemplo claro é a regra sobre o uso de máscaras na via pública. A investigação existente sugere que a transmissão do vírus em espaços abertos é quase nula. Um conjunto de cientistas decidiu avançar o argumento abertamente numa revista cientifica (British Medical Journal): “Nós não estamos a argumentar que a transmissão em espaços abertos representa um grande risco de transmissão”, mas defendem a utilização de máscaras em espaços abertos por “normalizar comportamentos de uso de máscaras em geral”. Independentemente da concordância com o argumento, o que está aqui em causa é um caso de cientistas afirmarem que a evidência científica vai num sentido, mas que as políticas públicas devem ir noutro. Assim demonstram que decidiram colocar em causa a separação entre ciência e política.

Estas confusões tornam-se particularmente visíveis em termos legislativos. Nesta matéria, a Constituição (normas que supostamente se encontram no topo da hierarquia legislativa portuguesa), leis (normas aprovadas em parlamento), decretos-lei (normas provenientes do Governo) e todos as restantes regulamentações governamentais (regulamentos, resoluções, portarias, etc.) tornam-se crescentemente indistinguíveis. Esta situação não tem origem numa alteração específica do regime jurídico-político português, mas da mera acção dos poderes soberanos. As diversas medidas governativas aprovadas desde o fim do primeiro estado de emergência têm consistentemente violado os direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição, sem que isso seja um poder do Governo (o Parlamento tem poder para regular em matéria de direitos, liberdades e garantias, mas a extensão com que o Governo o tem feito vai além dos poderes que a Constituição atribui ao Parlamento). A justificação para estas violações tem-se baseado na existência de “leis habilitantes”. Como submeti um requerimento ao Supremo Tribunal Administrativo (STA) contestando a existência de tais leis, reservo-me uma resposta para depois do acórdão do tribunal. Mas a suposição de que uma resolução do Conselho de Ministros pode apelar a uma lei para suspender o funcionamento da Constituição tem de se basear no facto de que a diferenças entre os diversos poderes normativos se tornaram imperceptíveis. Hoje em dia qualquer norma do Governo assumiu poder constitucional.

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Até recentemente, a legislação portuguesa apenas previa punição para pessoas que causassem “perigo” de saúde a terceiros. As políticas públicas poderiam ser determinadas por avaliações de risco, mas isto nada impunha a cidadãos específicos. Que, presentemente, o certificado Covid tenha determinado a cassação de direitos de cidadania a quem tomar a decisão de não se vacinar, alegando que estes cidadãos são de “risco mais elevado”, indica que o próprio perigo se irrealizou e em seu lugar surgiu um conceito de risco que é perfeitamente indeterminado em relação à pessoa particular a que se refere. Um cidadão que se mantém em isolamento completo constitui um perigo nulo de transmissão do vírus, mas de acordo com esta legislação representa um risco maior.

As implicações de tudo isto ainda estão por determinar, tal como continua por determinar a possibilidade de revogar as medidas que estão em curso. O que é claro, é que a repetida lembrança de que a resistência é punida por lei apenas serve para afirmar que hoje em dia é ilegal adotar qualquer ação que se oponha a medidas cuja fundamentação é completamente indeterminável.

Não tenho a ambição de superar as indeterminações que delimitam a nossa situação contemporânea. Mas será possível avançar verdades absolutas e praticamente irrevogáveis através de um pensamento baseado na indeterminação? Assumir que as posições relativas à presente crise são incontestáveis, torná-las no novo normal, o que necessita um processo de normalização do que começou como extraordinário. Esta questão não é de somenos importância, porque a indeterminação fundamental que está hoje em causa é entre o “retorno à normalidade” e a “normalização”.