O juiz Ivo Rosa disse a todos os portugueses, em directo na televisão, que a investigação do MP demonstrou que o PM Sócrates “mercadejou” o seu cargo de chefe de governo. Mercadejar significa “fazer transações comerciais”, “comprar ou vender, negociar.” Ou seja, segundo Ivo Rosa, Sócrates usou o cargo de Primeiro Ministro para fazer negócios. Ainda de acordo com o juiz Rosa, o mercadejar de Sócrates rendeu-lhe cerca de 1 milhão e setecentos mil euros. Não me interessa discutir as questões jurídicas e legais – outros farão muito melhor do que eu – nem se foram mais milhões, não é uma questão de soma, mas de comportamento. As implicações políticas de Portugal ter assistido a um PM que exerceu o poder “mercadejando” é que me interessam. Sobretudo o que diz respeito ao PS.
Ao contrário do que se passa na justiça, os actos políticos não prescrevem. Para o caso de Sócrates ser tentado a regressar à política, todos os portugueses devem saber que enquanto foi PM usou o seu poder para ganhar dinheiro de um modo ilícito. Este julgamento politico é independente de uma possível condenação ou absolvição jurídica.
Sócrates não mercadejou porque um dia resolveu mercadejar. Preparou uma carreira política para chegar a cargos onde se pode mercadejar. Ou seja, não foi o cidadão José Sócrates que mercadejou. Mesmo que um simples cidadão gostasse de começar a mercadejar, não conseguiria. Não seria capaz por uma simples e poderosa razão. Quem mercadejou foi o Primeiro Ministro. Foi o cargo que lhe deu o poder para mercadejar. E o PM Sócrates, na altura em que mercadejou, era líder do PS e chefe de um governo socialista. Esse é o ponto político mais relevante de todos.
Neste momento, todos os dirigentes do PS, desde o PM António Costa até aos ministros que trabalharam no governo de Sócrates, e não foram poucos, querem fazer acreditar que nunca lhes passou pela cabeça que o antigo líder seria capaz de mercadejar a partir de São Bento. Alguém em Portugal acredita que os dirigentes do PS – que estão agora no poder – não conheciam Sócrates, não sabiam como ele era?
Acredito que a maioria não fizesse ideia da dimensão do mercadejar, ou não quisesse mesmo saber por um instinto de defesa própria, mas todos sabiam que serviam um chefe com o mau hábito de usar o poder para ganhar dinheiro ilicitamente. Ou pelo menos desconfiavam seriamente. Aliás, estou há muito convencido que António Costa saiu do governo para se candidatar à Câmara de Lisboa porque percebeu que não poderia continuar a trabalhar para um PM como Sócrates.
A verdade é que o PS olhou para o lado enquanto Sócrates foi útil ao partido, ganhando duas eleições, e uma com maioria absoluta. Sócrates dava poder e era isso que o PS queria. Para os socialistas, o verdadeiro problema não foi Sócrates mercadejar, foi tê-lo feito à bruta, com demasiada ambição e, sobretudo, ter sido apanhado.
Como Sócrates foi apanhado, o PS abandonou-o, escondendo-se atrás do esconderijo chamado, “à justiça o que é da justiça, e à política o que é da política”. Até agora serviu, mas não é seguro que esta estratégia continue a funcionar. Em primeiro lugar, Sócrates deixou o exílio da Ericeira. O antigo PM é imprevisível e incontrolável. Poderá não ter um futuro politico, mas ainda tem uma grande capacidade de destruição. O animal feroz à solta ou, pior, a ser julgado, pode causar grandes danos ao governo socialista. Costa sabe isso melhor do que ninguém.
Mas há um problema ainda mais complicado, e que afecta a própria democracia portuguesa. O PS recusou assumir a verdade perante os portugueses, a mesma que Ivo Rosa disse a todos: um Primeiro Ministro socialista usou o cargo para mercadejar. Como recusou a verdade, o governo socialista precisa da mentira para continuar a garantir o poder. A incapacidade do PS para assumir a verdade tem causado problemas na justiça, no estado de direito e na independência das instituições soberanas. Sócrates tornou-se no enorme problema que o PS não consegue enfrentar. Até hoje, o governo socialista não conseguiu garantir aos portugueses que, ao contrário de Sócrates, não coloca os seus interesses à frente dos interesses do país.
Costa poderia ter dito aos portugueses duas coisas muito simples. Antes de mais, deveria ter pedido desculpa em nome do PS pelo que Sócrates fez, independentemente de uma condenação pelos tribunais. Depois, garantia que com ele a PM o governo nunca mercadejaria. Como não o fez, como não se antecipou ao juiz Rosa, cada vez haverá mais portugueses a pensar que há outros socialistas que também mercadejam. Mais, como pode o PS convencer os portugueses que não voltará a ter um líder que se comporte como Sócrates?