No próximo dia 4 vai fazer 17 anos que publiquei a primeira crónica na imprensa. O tema dessa estreia, no saudoso O Independente, era José Sócrates na campanha para as legislativas de 2005. Desde esse dia, Sócrates foi a personagem que mais vezes apareceu nos meus textos.
Escrevi sobre Sócrates e a polémica do aeroporto da Ota; Sócrates e o professor despedido por contar uma anedota; Sócrates e as pressões sobre jornalistas; Sócrates apanhado a fumar num avião; Sócrates e o falso convite de Chico Buarque; Sócrates a pôr Vara na CGD; Sócrates e a licenciatura manhosa ao Domingo; Sócrates e a compra da TVI pela PT; Sócrates e o Freeport; Sócrates e os Magalhães; Sócrates contra Teixeira dos Santos; Sócrates e a pressão sobre a Lusa para não usar a palavra “estagnação”; Sócrates e a pressão sobre a Lusa para citar uma frase que ele não disse; Sócrates e a dívida; Sócrates e a OPA à PT; Sócrates em Paris; Sócrates e os comentários na RTP; a tese de Sócrates; Sócrates na prisão; Sócrates e o amigo especial; Sócrates & Lula; Sócrates e os envelopes; Sócrates e a namorada arguta para umas coisas e ingénua para outras; Sócrates e o ghostwriter; Sócrates e a auto-compra de livros; Sócrates e Salgado; Sócrates, Pinho e a EDP; Sócrates e o blog do Abrantes; Sócrates e a compra do Público pela Lena; Sócrates e Bataglia; o primo de Sócrates; Sócrates e a compra do domínio “Sócrates2011” ainda antes da queda do Governo; Sócrates e a visita da polícia ao sindicato na Covilhã antes de uma manifestação; Sócrates e o general prussiano no JN; as escutas de Sócrates; Sócrates e a SMS de Galamba; Sócrates e a mãe depenadinha; Sócrates e Carlos Alexandre; Sócrates e Ivo Rosa. E muito mais. A história de José Sócrates consegue ter mais fascículos que a colecção da Anita e ser ainda mais arreliante. É uma saga que chaga.
Ao fim de quase 20 anos, José Sócrates continua a pairar sobre o país. O ex-primeiro-ministro é uma espécie de Elvis Presley da vida portuguesa. A sua presença parece eterna, se bem que com cambiantes ao longo do tempo. Como Elvis teve a fase inicial até ir para o exército, a fase dos filmes, a fase do Comeback Special de 1968 e a fase de Las Vegas, Sócrates teve o seu período de conquista do país, o da bancarrota e ida para Paris, o da prisão, e vive agora o seu período de declínio. Não em Las Vegas, mas à beira da EN247, nos arrabaldes da Ericeira. Como um Elvis balofo a arrastar-se no palco vestido com um macacão de lantejoulas, Sócrates é uma caricatura do que já foi. A música é repetitiva, a voz esganiça onde não é suposto, os fatos esterlicam, mas o artista ainda tem carisma. Deve ser o tal dom profano de que fala o autor do livro que Sócrates publicou.
Desta vez, Sócrates veio dar uma entrevista na CNN para se lamuriar da atribuição do seu processo ao juiz Carlos Alexandre. A partir de uma série de indícios, Sócrates construiu uma teoria da conspiração – a já saudosa cabala – que a “direita política”, “os juízes” e outros inimigos figadais terão urdido contra si. É curioso que Sócrates se permita usar indícios para construir uma história, quando passou os últimos anos a opor-se às suposições que todos formámos com os indícios dos milhões de euros que lhe chegaram às mãos através dos meios mais esquisitos.
Sócrates anunciou que vai processar o juiz Carlos Alexandre. Parece-me bem. Se vai processar, quer dizer que vai ter de pagar ao Estado a taxa de justiça, as custas processuais e outras despesas. É uma forma, ainda que insignificante, de começar a devolver aos portugueses tudo o que lhes subtraiu. Venham mais processos.
Solicitar uma entrevista para comentar lapsos burocrático-administrativos da atribuição do processo ao juiz, sem referir uma única vez a substância das acusações, é bizarro. É como se Rosa Grilo exigisse ser absolvida porque o seu nome aparece mal escrito na página 7 da sentença.
Mas não foi só isso que Sócrates veio fazer à televisão. Veio também lembrar aos seus antigos camaradas do PS a época em que estiveram todos juntos. E se até Sócrates, que tem dificuldade em recordar-se das fortunas que recebeu em envelopes, se lembra disso, é porque o povo português também se deve lembrar. Não admira que António Costa tenha ficado irritado com esta aparição. Sobretudo com a parte em que Sócrates o censurou por “desmerecer” a maioria absoluta de 2005. Não é todos os dias que se ouve uma descompostura de Sócrates. Ainda por cima, levar um ralhete sobre educação de José Sócrates é como receber uma aula de condução de Eduardo Cabrita.