Comecei por ir com os meus pais e irmãos, ainda bem pequeno. Juntávamo-nos às famílias dos amigos dos meus pais e tornávamo-nos amigos dos filhos dos amigos dos meus pais.

Eram pessoas que só víamos ali, naquela altura, repetidamente todos os anos.

E crescemos com eles. E os meus pais e os seus amigos envelheceram connosco. Depois deixámos de ir com os pais. E passámos a ir com os nossos amigos, namoradas, mulheres, filhos.

E passámos nós a ser os pais que iam com os filhos para aquela praia. Que agora passou a ser dos nossos filhos também. E eles dela.

E os nossos filhos brincaram com os filhos dos nossos amigos e tornaram-se seus amigos. E cresceram com eles, enquanto nós envelhecemos a vê-los.

Naquela praia. Que nos pertence e a que todos nós pertencemos.

Foi lá que aprendi a mergulhar nas ondas grandes que se formam quando há Levante. Mergulhar por baixo delas, e nunca as deixar rebentar em cima de nós, nem nunca lhes virar as costas. Passar a rebentação e ficar lá a boiar, e a subir e descer aqueles gigantes, com os pés para frente. E só sair da água na acalmia que se segue à sucessão de ondas grandes. E ensinar tudo isso aos filhos, e aos sobrinhos e aos filhos dos amigos também. E depois ir com eles para lá da rebentação.

E ver os “bifes” com pele de lagosta deixarem as ondas rebentar em cima deles, em vez de mergulharem por baixo, e virarem-lhes as costas sem cuidados nem respeito, e tentarem entrar e sair da água durante as ondas grandes sucessivas, e depois serem enrolados e perderem o fato de banho e correrem envergonhados e envergonhadas para a toalha enquanto nós rimos todos do espectáculo.

Foi naquela praia que aprendi e ensinei a encontrar camaleões nas dunas lá atrás, criaturas estranhas que depois  deixamos passear pelos nossos braços, cada olho a olhar para o seu lado de forma independente, o corpo a balancear a fingir que é uma planta ao vento.

E apanhamos escaravelhos que guardamos num balde com areia e vemos correr e enterrarem-se sem descanso. E agarramos casas-alugadas dentro de água, aqueles mini-lagostinhas que ocupam as conchas de outros, que depois  pomos num balde com areia e água, e ficamos a vê-los a lutar e a andar e a enterrarem-se também.

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E soltamos tudo ao final da tarde, escaravelhos e casas-alugadas, de volta ao seu local de origem.

Foi ali que fui picado por um peixe-aranha, que fomos todos sendo picados ao longo dos anos. E foi onde às vezes ficamos horas na conversa, com a água pelos joelhos, enquanto tentamos ganhar coragem para entrar e mergulhar, mas depois desistimos e saímos e decidimos afinal entrar a correr e a gritar como demónios, mesmo sem ter já idade para essas coisas.

E é lá que eu saio da água e vou para a areia seca, branca, fina, quentinha, onde me deito e me rebolo sem toalha, ficando todo coberto de areia quente colada à pele molhada, a fazer “croquete”. Mesmo sem já ter idade para essas coisas.

É naquela praia que as Bolas de Berlim sabem melhor, luxo semanal comprado de manhã aos senhores que percorrem o areal ao calor e a gritar pregões que já não se gritam em mais lado nenhum.

É ali que jogamos raquetes no areal extenso firme da maré baixa, casais entre si, pais e mães a ensinarem os filhos, até estes já jogarem entre eles, melhor que os pais.

Aquela é a praia que fazemos em passeio, de uma ponta à outra, quilómetros com os pés na água rasa do fim das ondas, conversas infinitas entre todos a andar numa linha alinhada de exército. E onde corri e corro e ensinei os filhos a correr, para uma ponta e para a outra, sem nunca até hoje ter conhecido melhor sítio no Mundo onde correr.

Quem é que nunca fez pocinhas na areia molhada, alegadamente para os filhos, e depois as viu desaparecer engolidas pela maré? É aí, nessa praia, que acabamos por conhecer a direcção e o horário dos ventos e das marés de cada dia, mas já não sabemos qual o dia da semana nem do mês.

É lá, nos dias compridos de Junho e Julho, quando o vento norte caiu e desapareceu, que aproveitamos as tardes boas até às nove, quando o Sol já se esconde no horizonte e as gaivotas competem pelo areal connosco, os últimos humanos no seu território de repouso nocturno. São as melhores tardes de sempre.

Aquela praia é como um amigo antigo, próximo e bem conhecido, que cumprimentamos à chegada, excitados, com a rotina de poisar as coisas, espetar o guarda-sol naquele local exacto, nem um palmo para esquerda nem para a direita, e depois pôr o protector solar, com uma fila familiar em que cada um o põe nas costas de outro.

É como um amigo, de quem nos despedimos ao final do dia, quando saímos já cansados e a arrastar os pés, que sacudimos antes de entrar no carro.

E é onde, num mesmo sítio, ouvimos pronúncia do norte, do sul e do centro, bem como os estrangeirismos dos emigrantes, e onde somos todos portugueses, porque a praia é nossa e nós somos da praia.