a Luís Vaz de Camões
1 Quando por vezes me convidam para ser a contadora de alguns lugares e mundos aos quais – estou disso certa – devo grande parte do meu modo de ser e fazer, ninguém adivinhará a dificuldade da empreitada. Desde logo porque me impõe um convívio com a memória após tantas e tão fecundas deambulações pelas sete partidas. Exercício, como se sabe delicado, este, de deixar soltar a memória por aí fora, sem rédea, nem rede. Depois, porque como sou de mais de uma pertença, nunca me surge como tarefa fácil o contar que se pode com naturalidade e felicidade, pertencer a mais de um lugar. Depois ainda, porque se trata de uma viajem a qual, amparada nesse convívio com a memória, é, como disse um dia a maravilhosa Nélida Pinon, um “delicado e incerto ofício que conta apenas com a palavra”.
Ora encontrarei eu as palavras exactas, límpidas, para voltar á vertigem e a fortuna da viagem?
2 Foi pelo sul que abri a descoberta e pelo sul que caminhei.
Calhou-me assim em sorte uma luz que cedo me predispôs o olhar para a transparência dos lugares e das paisagens desse sul. Fui desde logo solicitada para essa espécie de claro relevo na rota do calor, para a exuberância dos verdes, o cheiro acre da terra sob a chama do sol, para corpos mais nus que vestidos, dias mais longos, noites mais breves. E por sobre tudo isso, céus sempre mais estrelados, que quaisquer outros céus. Numa espécie de sagrada harmonia entre as coisas, as pedras, os seres e os lugares. Falo e não por acaso de lugares, porque foi por eles que comecei, foram eles que tiveram a primazia na curiosidade e no afã do meu correr.
Só depois os seus habitantes ilustraram, ocuparam, a viagem. Eram as traves mestras, mas quem os precedia era a luminosidade, o perfil da pedra tingido pelo sol, a superfície liquida de mares e dos rios, a planura das areias, o recorte da paisagem, os embondeiros, as palmeiras, as mangueiras. O Atlântico e o Índico. A geografia, portanto. A do maior dos poetas. Esses mares de Luís Vaz de Camões e a desmesura da gesta portuguesa que nos deixou o génio da sua pena.
E depois havia a derisória nostalgia de tudo isto, como se eu já lá estivesse estado, como se de cada vez ocorresse um singular reencontro de mim com tais lugares onde nunca fora mas parecia afinal que tão bem conhecia.
3 Fui pelas savanas de África e pelos morros do Brasil e pelos cheiros da India. Fui e encontrei a altaneira torre portuguesa da branca Arzila, à beira de Marrocos; vislumbrei uma praia com sete ondas em S. Tomé e conheci a solidão sem limite da ilha do Príncipe; descobri a lendária Ajudá no escondido Benim, e mais abaixo a cidade de S. Salvador de Luanda, na orla do Atlântico sul; do outro lado de África vi a incomparável dimensão do Forte de Jesus, em Mombaça: e ainda no Índico, em Quíloa, nessa já orientalizada África que é a Tanzânia, curvei-me perante a memória de D. Francisco de Almeida que lá levantou pedras em nome de Portugal e consta que nasceu uma fortificação em apenas vinte e três dias. E depois, parti em busca do ruído alucinante de Bombaim, a prenda de Portugal aos ingleses por mor de um casamento real; fui atrás das quietas águas de Cochim onde morreu Vasco da Gama e dos arrozais de Goa, entrecortados ao longe pela mancha das brancas igrejas, há sempre brancas igrejas ao longe de Goa; procurei a cidade espraiada de Malaca onde está a impressiva Famosa, que é nome de Fortaleza; entristeci sob o crepúsculo de Dakha nesse desolado Bangladesch e inebriei-me com a noite tão quente de Banguecoque. E tudo isto – e porque em tudo isto esteve o poeta em corpo e alma – com Luís Vaz de Camões no pensamento. Cinco séculos antes de mim também aqui andou nestes mesmíssimos lugares e também descobrindo mais Portugal que se ia fazendo tão longe. Por vezes acudiam-me estrofes, passagens, momentos desses Lusíadas que tudo cantaram da nossa saga pelo desconhecido. Mas tão impressos estavam por vezes esses versos no que eu via e ouvia que era como se subitamente os ponteiros do tempo andassem para trás e Luís de Camões andasse comigo pelas águas daquele Indico
Também rumei a ocidente deste sul, circulando por vários Brasis. Cada um deles com o seu especifico coração e uma identidade própria mas todos unidos pelo denominador comum da língua que é a nossa. E mais adiante, aportei á Colónia do Sacramento, florida de hibiscos e banhada por esse rio de enganos que é o Rio da Prata, um pedaço do Uruguai que mais se assemelha afinal nas suas linhas, a um perdido e amoroso canto de Portugal.
Parti sempre em busca da nossa impressão digital e do que dela hoje resta e espantosamente em todo o lado a encontrei. Fui onde me levaram esses sinais, marcas e marcos; parti cinco séculos depois, passageira dessas mesmas caravelas de tão estranho desígnio, dos portugueses das sete partidas.
4 Parti dez vezes, vinte vezes, todas as vezes, e sempre descendo a sul. Vi gente em Malaca que misteriosamente persiste hoje em rezar, falar ou cantar na nossa língua, e que também aprecia cozinhar em português. E quando atónita lhes perguntei porquê, responderam-me com Afonso de Albuquerque e soletraram-me a data de 1511; vi na Igreja do Santo Rosário de Daka, no improvável Bangladeche, imagens e ornamentos religiosos levados de Macau ou da India, por mãos que só podiam ser lusas; vi grandes arquivos impressos na minha língua, no Paço Episcopal de Cochim; vi em S. Luís, terra do Maranhão, em chão brasileiro um grande mural representando o Terreiro Paço antes do terramoto de 1755; no Estado de Minas Gerais, vi na cidade de Ouro Negro, pequena-grande jóia branca puramente decalcada de cidades nossas mas foi, recordo-me bem, na açoriana Angra do Heroismo que pensei; e no Rio de Janeiro, no Real Gabinete de Leitura, vi a formidável biblioteca que lá deixou o D. João VI e chorei diante da impressivíssima talha doirada, estonteantemente barroca, dos altares do Mosteiro beneditino de S. Bento do Rio, uma quase cópia da nossa Madre de Deus, com as suas obras primas de ourivesaria; na pequena povoação tailandesa de Ayuttháya, vi as ossadas de alguns religiosos portugueses agora já cuidadosamente acondicionadas em digna morada á beira da Igreja de S. Domingos, templo erguido em 1566, por dois sacerdotes portugueses; em todas as partes ouvi muito falar deste ocidental canto da Europa de onde somos e de onde partimos. Em Mombaça, em Ajudá ou na Malásia e, em muitos lados, vi anónimos Baptistas, Fernandes, Silvas e Sousas, inscritos na frieza de pedras tumulares. Vi, na sexta feira da Paixão de uma Páscoa que jamais, jamais esquecerei, milhares e milhares de fieis em procissão atrás da Confraria da Rainha do Rosário, fundada nos idos de seiscentos, na Ilha das Flores, da remotíssima Indonésia. Fieis que exigem manter intactos alguns dos nossos ritos, rituais e costumes e ainda usam hoje, na linguagem corrente da pequena ilha, muitos vocábulos da nossa língua. Ouvi suplicar bolsas de estudo para aprender português em Portugal, ouvi de todos os lados do mundo, pedir livros, receitas de cozinha, letras e músicas do nosso folclore; perguntarem-me pelo Benfica; escutei alguém em Moçambique a insistir com urgência na reconstrução da mágica Ilha do mesmo nome. Por todo o lado deparei com gente a reclamar-se naturalmente de uma herança, um património e um passado que bem vistas as coisas, só parece afinal embaraçar-nos hoje a nós. Manifestamente a muitos de nós. Não tem importância, talvez passe. Os Lusíadas ficam.
As vezes perguntam-me: de que gostou mais? Devo ter tido outras vidas, já que em África fui africana, no Brasil, brasileira, e por aí fora, sou de muitas pertenças. Mas finalmente há alguma coisa que perdura e insistentemente permanece em mim, agora que o tempo sedimentou descobertas e filtrou emoções. Foi talvez essa ideia de que fomos melhor do que aquilo que pensamos que fomos. Mas talvez tivesse que ser como S. Tome, “ver para crer”. Eu que já “acreditava” antes de ver, quando vi, fiquei envolta pelo véu de uma gratidão sem tamanho. O século XVI foi português, Portugal esteve, para o bem e para o mal, em todas as lonjuras da carta do mundo. Ter podido aperceber-me disto, tê-lo visto com os meus próprios olhos em cada solo dessas lonjuras, constitui sem sombra de dúvida um dos maiores presentes que a vida me deu.
Foram os meus Lusíadas.
Esta crónica recupera passagens de uma outra que publiquei neste mesmo jornal, em 2015, a propósito dos seiscentos anos da conquista de Ceuta