As grandes transições que nos vão levar até 2050 – climática, energética, ecológica, demográfica, agrária, digital, laboral, social e cultural – solicitam-nos que olhemos para o futuro de uma forma muito mais articulada, ou seja, que sejamos capazes de desdobrar o tempo em curto, médio e longo e que, em cada momento, tomemos as medidas adequadas a esses três tempos. Se o espaço-tempo é uma variável tão determinante, o espaço-território, ou o modo como ocupamos o território e distribuímos os estímulos pelos diferentes subterritórios, é igualmente fundamental. Não temos qualquer dúvida de que estaremos mais bem apetrechados para conhecer os vários elementos que compõem um território e a sua dinâmica interna, pois nas próximas três décadas assistiremos a progressos notáveis naquilo que poderíamos designar como a internet dos territórios e a geoeconomia de sistemas de base territorial, a saber:
- A convergência das redes 4G e 5G (e a sua cobertura territorial) e o desenvolvimento exponencial da inteligência artificial, conduzirão a mais e melhor automação, robotização e máquinas inteligentes, bem como, a maior crescimento da capacidade de computação;
- Os satélites, os radares, os drones, as câmaras e os sensores, as impressoras 3D, promoverão uma explosão dos sistemas de informação geográfica (SIG) e outros tantos sistemas de orientação e mapeamento do território;
- Esta economia do conhecimento gera uma malha apertada que nos irá conduzir a uma nova geoeconomia de sistemas de base territorial e à sua smartificação em múltiplos formatos: sistemas agroalimentares locais (SAL), sistemas agroflorestais (SAF), áreas de localização empresarial (ALE), áreas de paisagem protegida (APP), comunidades locais de energia (CLE), amenidades de recreio e lazer (ARL), cidades inteligentes e criativas (CIC), zonas de proteção marinha ( ZPM), áreas de cooperação transfronteiriça (ACT), entre muitas outras delimitações de interesse público;
- Esta nova economia do conhecimento irá levar-nos, muito naturalmente, à formação de novos territórios em rede e uma nova geração de ações integradas de base territorial (AIBT) onde o ator-rede e a curadoria territorial terão um papel muito relevante.
Estamos, claramente, no limiar de uma nova era, uma era de duplo movimento. Por um lado, a internet atira-nos para o ciberespaço, para a realidade virtual e aumentada, por outro, traça um retrato muito mais fiel e detalhado da geoeconomia dos sistemas de base territorial, onde a malha fina dos sistemas de informação geográfica nos permitirá, doravante, olhar cirurgicamente para os territórios e agir em territórios-rede com muito maior critério, rigor e efetividade.
Internet dos territórios e comunidades socialmente inteligentes
Não basta, porém, recolher, tratar e aplicar informação pertinente. Uma boa internet dos territórios não é compatível com uma sociabilidade fraca dos territórios ou, dito de outro modo, sem a força dos laços fracos das comunidades online as grandes transições já referidas e o esforço de reorganização societal que implicam serão infrutíferas. Refiro-me ao espírito associacionista, à reinvenção do movimento associativo na era digital, aos movimentos de fundo e a uma transformação sociocultural da mesma amplitude que nos introduzirão a uma nova geração de clubes científicos, culturais e literários, às associações de produtores e empresários, às oficinas de artes e ofícios 4R, aos espaços de coworking, aos bancos de terras e alojamento local, aos condomínios de aldeias, aos espaços seniores de envelhecimento ativo, às comunidades intermunicipais dos bens comuns, aos jardins botânicos de biodiversidade, entre outros, mas, acima de tudo, à formação de uma malha capilar muito apertada de economias de proximidade e bens comuns entre todas estas comunidades inteligentes. Este movimento de fundo podemos denominá-lo de democracia associacionista e colaborativa, o novo espaço público das sociedades em transição digital para onde convergem a força dos laços fracos das comunidades online e a fraqueza dos laços fortes das comunidades offline.
Nesta aceção muito compreensiva, a internet dos territórios irá permitir a instalação de sistemas inteligentes em muitas áreas: na economia azul, bioeconomia, economia agroalimentar, economia florestal, economia energética, economia circular e em muitos geossistemas de base territorial como, por exemplo, um parque agroecológico municipal de fins múltiplos, uma área de paisagem protegida ou um geoparque, um condomínio de aldeias (as aldeias vinhateiras, as aldeias históricas, as aldeias de xisto), uma associação de produtores de fins múltiplos (uma área de montado), uma zona de intervenção florestal de fins múltiplos (as ZIF), um grupo de ação local ou uma associação de desenvolvimento local (ADL) para gerir um banco de terras, um banco de alojamento local, uma zona termal, uma área de montanha ou uma amenidade paisagística, um centro de investigação ou um laboratório colaborativo para gerir uma rede de oficinas 4R de economia circular, ou, ainda, terrenos baldios semiabandonados, um núcleo de agricultura periurbana, entre muitos outros exemplos.
De ora em diante, as comunidades socialmente e emocionalmente comprometidas precisarão de muita competência racional e sentimental para administrar este duplo movimento da internet dos territórios. Em todos os casos, vamos necessitar de comunidades e plataformas inteligentes, baseadas em conhecimento, cooperação, cultura e criatividade (4C), para criar e administrar bens coletivos, serviços ambulatórios e bens comuns de proximidade.
As comunidades inteligentes e o papel do ator-rede
Aqui chegados, o leitor já percebeu que estamos à procura de um triângulo virtuoso que articule três inteligências: a inteligência racional da razão lógica, a inteligência emocional da razão colaborativa e comunitária e a inteligência artificial que está contida ou é derivada daquilo que aqui designámos como a internet dos territórios. Precisamos agora de uma estrutura de ligação entre estas três inteligências. É a hora dos territórios-rede (T-R), dos atores-rede (A-R) e das ações integradas de base territorial (AIBT). O T-R de uma comunidade inteligente e a AIBT de um grupo de ação local podem ser administrados por um agente-principal, o ator-rede, que é uma estrutura de ligação tendo em vista a realização do bem comum e colaborativo. Além disso, ele deve estar avisado para colmatar os ângulos mortos e as interações fortuitas do seu programa, pois alguém tem de monitorizar os efeitos externos, os incidentes de percurso, o risco moral envolvido e as ocorrências acidentais.
Sabemos hoje, em plena era digital, que as plataformas colaborativas vão para lá dos limites físicos e que é cada vez mais difícil dizer o que é interno (insourcing) e externo (outsourcing) a uma comunidade territorial. Isto quer dizer que só cooperativamente podemos resolver um problema que antes podia ser resolvido por dissimulação, ocultação ou negação, pois a existência de uma barreira ou fronteira tornava possível muitos arranjos de conveniência. Agora, o ator-rede de uma comunidade inteligente está incumbido de procurar formas cooperativas de governo e novas dinâmicas de cooperação que darão origem a muitas combinações de soma positiva.
Sabemos, ainda, que o valor cognitivo da inteligência coletiva territorial (ICT) será muito valorizado se forem construídos e monitorizados certos pontos de acostagem necessários ao mapeamento do território, por exemplo: os planos de ordenamento e gestão das áreas de paisagem protegida, a requalificação dos espaços circundantes dos equipamentos e infraestruturas, as marcas de referência dos produtos, a certificação de serviços e destinos, a acreditação de estruturas coletivas para a promoção dos territórios, a criação de parcerias sólidas com os centros de investigação, os programas de intervenção comunitária visando o reconhecimento dos territórios e uma geografia desejada. Esta cartografia e este mapeamento, quase sempre traduzidos em sistemas de informação geográfica (SIG) são as fontes de inteligência coletiva que os atores-rede devem transformar em recursos e ativos cognitivos do desenvolvimento territorial.
Todavia, nos territórios mais desfavorecidos, o território-rede é, ao mesmo tempo, uma necessidade instrumental e uma construção problemática por sofrer de um claro défice de capital social. Por um lado, as micro e pequenas empresas e serviços defrontam-se com um custo de organização e transação muito elevado, por outro, as associações de desenvolvimento local e rural, na sua grande maioria filhas circunstanciais das políticas públicas em vigor, também não parecem estar em condições de garantir essas economias de rede e aglomeração e esta fragilidade é um teste decisivo à sua sobrevivência no futuro próximo. Estamos, aparentemente, perante um verdadeiro paradoxo, pois rede, cooperação e geoeconomia fazem parte da mesma realidade.
Apesar destas dificuldades em delimitar espaços institucionais e/ou associativos, num determinado concelho, comunidade intermunicipal ou sub-região, não nos podemos deixar condicionar e ficar satisfeitos com candidaturas dispersas ao investimento em explorações agrícolas ou unidades industriais. Pelo contrário, é necessário ligar esses investimentos no quadro regional e sub-regional e perguntar qual é o valor acrescentado que foi criado, qual é o espaço de cooperação empresarial, associativo e institucional que daí resulta e em que medida um determinado programa de investimentos acrescenta valor específico à geoeconomia dessa comunidade ou sub-região. Como dissemos, na aldeia global, já não há o dentro e o fora, logo, a geoeconomia dos espaços de cooperação deve programar e executar estratégias cooperativas que reduzam as vulnerabilidades próprias e aumentem a capacidade de gerar capital social entre atores que até aí mal se conheciam e pouco interagiam. Eis alguns exemplos de espaços de cooperação e redes de relações onde essa interação pode e deve acontecer se, para tal, formos capazes de organizar as correspondentes plataformas digitais e uma dinâmica colaborativa efetiva:
Em todos os casos, trata-se de reduzir a entropia das relações entre espaços e aumentar a sinergia dos benefícios de contexto, adequando a respetiva intensidade-rede ao ritmo de gestação de novos projetos comuns e colaborativos. O objetivo é, pois, gerir uma matriz de fluxos muita rica e não uma coleção de gavetas orçamentais que abrem e fecham descompassadamente ao ritmo dos avisos de concurso.
A agenda política e o sistema operativo dos territórios
Aqui chegados, já sabemos as tarefas ou missões principais que nos esperam. Em primeiro lugar, como construir uma geografia desejada e uma comunidade de destino em ordem a suscitar o entusiamo de uma população, em segundo lugar, como conceber uma gramática dos bens comuns e a correspondente plataforma digital colaborativa, em terceiro lugar, como montar uma ação integrada de base territorial e a engenharia social do ator-rede respetivo. O quadro geral do sistema operativo dos territórios pode ser descrito como segue:
Para gerir toda esta agenda política do território, o ator-rede terá de desempenhar exemplarmente o papel de agente-principal da sua comunidade inteligente, isto é, deve ter uma liderança efetiva na mobilização dos pares, uma boa utilização dos instrumentos da internet dos territórios para consolidar uma geografia desejada, uma noção muito criteriosa no que concerne ao bom uso das redes de cooperação e respetivas plataformas colaborativas, um sentido crítico muito apurado no que diz respeito à inovação de processos e produtos, mas, também, à essência dos lugares, uma abordagem muito aberta em relação ao capital social e, em particular, ao empreendedorismo jovem e transgeracional, finalmente, uma atenção muito aberta em relação às novas referências socioculturais, artísticas e criativas da terceira década e sua transferência para os T-R, as AIBT e as CIM, que serão as suas comunidades de destino mais privilegiadas.
Notas Finais
Em síntese, a internet dos territórios coloca, ao nosso alcance, dispositivos técnicos e tecnológicos que nos permitem intervir no território de modo mais criterioso, cirúrgico e eficaz. Falamos de comunidades inteligentes que buscam delimitar um território-rede de ação direta, que visam aplicar um programa ou uma ação integrada de base territorial (AIBT), que elegem um ator-rede e atraem o talento criativo por intermédio de plataformas colaborativas, que promovem uma oferta integrada de bens e serviços comuns e de proximidade, que revisitam as fileiras e cadeias de valor locais e regionais tendo em vista um renovado placemaking, isto é, uma coordenação mais intensa entre recursos naturais, criativos e produtivos. Neste sentido, com a informação e o conhecimento que estará disponível, teremos, doravante, uma geometria muito variável de lugares e territórios, do condomínio de aldeias às áreas integradas de gestão paisagística, dos parques e geoparques aos consórcios empresariais, dos clubes e cooperativas de produtores às associações de desenvolvimento local, enfim, uma smartificação do território muito rica e diversificada.
Todos estes fatores fazem variar o perímetro da comunidade inteligente. Está em causa uma nova cultura pública do bem comum colaborativo. E o que pode condicionar esta nova cultura pública do bem comum colaborativo? O poder das corporações, o narcisismo dos líderes, as burocracias políticas, a manipulação da comunicação social, a trivialização do espaço público, a desafeição pela política, a cacofonia discursiva. O que, convenhamos, não é coisa pouca.