Os territórios digitais são uma espécie de novo emblema das políticas do território. Vale a pena, por isso, fazer um esforço analítico no sentido de perceber melhor em que consiste e o que está em jogo quando se fala de territórios digitais e digitalização territorial. O conceito de região-cidade inteligente procura responder a esse esforço analítico que contempla, por um lado, a definição de um governo dos comuns e, por outro, o instrumento/sistema operativo de um centro partilhado de recursos digitais.
Com efeito, e em contraponto ao negócio digital que irá inundar a sociedade portuguesa em todas as suas áreas de atividade, a digitalização de um território precisa de um centro dotado de um mínimo de racionalidade global sob pena de muita cacofonia e ruído de fundo. Ou seja, precisamos de uma estrutura de missão e autogoverno dotada com um mínimo de população, atribuições, competências e meios, que seja capaz de articular os poderes setoriais e intermunicipais com as expetativas das populações expressas através de recursos e dispositivos digitais e, através desse sistema operativo e colaborativo, suscitar e promover os efeitos de escala, reticulação e aglomeração que o território mais necessita. A região-cidade inteligente seria, assim, o ator-rede desta rede urbana, comunidade intermunicipal (CIM) ou território-rede.
Imagine-se, por exemplo, a CIM do Alto Alentejo, com 15 concelhos, 118 mil habitantes em 2011 e 105 mil em 2021. De acordo com o conceito de região-cidade inteligente, seria constituída uma plataforma de cidadania interativacom o propósito de selecionar os bens comuns ou comunitários que deveriam ser colocados ao serviço de toda a população desta subregião, uma cidade-rede com 105 habitantes. De acordo com este novo elenco de prioridades, a região-cidade debateria a natureza, os conteúdos e os limites do centro partilhado de recursos digitais, tendo em vista apetrechar a região com as infraestruturas de conexão que, por intermédio das redes 4G e 5G, viabilizam os novos serviços digitais, assim como o modelo operacional e logístico que colocaria os bens e serviços comuns à disposição da população da região.
Neste contexto, uma medida de relativo bom senso parece-me apropriada, a saber, que este centro de racionalidade territorial, que aqui designo como região-cidade inteligente, deveria preceder a vaga do negócio digital, pela simples razão de que essa precedência daria outra consistência às inúmeras aplicações tecnológicas e digitais que inundarão o mercado e os territórios, logo após a introdução das redes 4G e 5G. Ora, é certo e seguro que a transformação dos territórios não se compadece com a velocidade do negócio digital e dentro em pouco todos estaríamos a lamentar a ligeireza e a leviandade do propósito.
Ora, por razões que todos conhecemos, as regiões-cidades do interior de Portugal teriam uma dimensão média mais elevada (neste caso 105 mil) e, a esta escala, o governo dos comuns seria uma oportunidade única de colocar à sua disposição bens e serviços com uma eficácia e eficiência muito superiores. Mas este propósito, expresso desta forma simples, é uma autêntica revolução num sub-região que coincide com o distrito e a unidade estatística NUTS III. Por várias razões.
Em primeiro lugar, seria uma revolução na gestão municipal e intermunicipal, o que implicaria, desde logo, uma alteração substancial na orgânica interna dos municípios no que diz respeito à relação back office versus front office e à estrutura de qualificações do pessoal técnico das autarquias.
Em segundo lugar, seria necessário combater em toda a linha a iliteracia digital em todas as faixas etárias, o que implicaria, igualmente, uma reforma profunda nos programas escolares e na organização do edifício escolar intermunicipal na sua plenitude, por exemplo, a através da criação de uma escola secundária de artes e tecnologias.
Em terceiro lugar, a digitalização da região-cidade inteligente necessitaria de uma política muito mais substancial de descentralização político-administrativa, pois estariam criadas as condições para uma gestão mais eficiente de recursos escassos no plano sub-regional que as atuais atribuições CIM apenas cobrem parcialmente.
Em quarto lugar, a região-cidade inteligente do Alto Alentejo, nesta aceção digital, teria ainda de vencer a barreira da sua geografia sentimental e ser um território-desejado, uma cidade-rede para o século XXI, muito próxima das populações e colocando à sua disposição uma série de bens e serviços comuns, fixos e ambulatórios, que, de outro modo, nunca seria possível.
Em quinto lugar, para ser mais do que um simples território esperto, a região-cidade inteligente do Alto Alentejonecessitaria de novos espaços de liberdade onde exercitar a inteligência, a imaginação e a partilha de conhecimentos; por exemplo, os espaços colaborativos de coworking e as incubadoras empresariais apresentam estruturas muito variáveis, permitem os primeiros passos aos futuros empreendedores e são, também, um laboratório experimental onde começam a tomar corpo novos formatos de inteligência coletiva territorial.
Em sexto lugar, a região-cidade inteligente (os 15 concelhos), para lá das novas utilities intermunicipais estaria obrigada a criar uma nova escola industrial para o século XXI, uma escola de negócios digitais em íntima colaboração com as associações empresariais e as outras escolas da região.
Em sétimo lugar, e porque na sociedade da informação e comunicação não há fronteiras, a região-cidade inteligente do Alto Alentejo teria, ainda, de criar os seus signos distintivos territoriais, uma iconografia apropriada à sua nova imagem e condição, isto é, o Alto Alentejo teria de ser uma região-cidade não apenas esperta, mas, sobretudo, inteligente e criativa. Quer dizer, a ciência, a arte e a cultura teriam de ser mobilizadas para a produção de conteúdos simbólicos e para alguma mercantilização das indústrias culturais e criativas.
Em oitavo lugar, e em posição muito destacada, a região-cidade inteligente do Alto Alentejo teria de cuidar da sua responsabilidade social, pois o risco de exclusão digital é muito elevado numa fase mais ou menos longa de transição; todavia, este é um campo onde o sistema previdencial da região-cidade poderia ser extraordinariamente inovador, com soluções de grande proximidade e itinerância junto dos utentes dos diversos subsistemas de proteção social.
Em nono lugar, a região-cidade inteligente poderia ser muita inovadora no que diz respeito às relações de trabalho da economia digital, em sentido amplo, se estiver na posse de uma carta geográfica dos parques empresariais e cadeias de valor que atravessam a região e de um banco de dados sobre emprego e formação profissional; se assim for, a região-cidade inteligente poderia apresentar soluções muito criativas e interessantes de mobilidade geográfica e profissional para aplicar no interior da sub-região e em regiões contíguas.
Por último, a confluência de meios financeiros substanciais para a região-cidade do Alto Alentejo por via do PRR e do PT 2030 vai pôr à prova a viabilidade do próprio projeto, mais conservador sob a forma de uma CIM, mais inovador e ousado sob a forma de região-cidade, sendo certo que uma simples smartificação do território do Alto Alentejo não será suficiente para um verdadeiro projeto de desenvolvimento regional.
Notas Finais
Prova-se, facilmente, que um território não se pode limitar a sobreviver como mera unidade estatístico-administrativa, do tipo NUTS II ou NUTS III ou, mesmo, como uma CIM. Poderá ser um território smart, mas nunca será verdadeiramente um território inteligente e criativo, pois terá sempre uma baixa intensidade-rede e uma fraca sociabilidade. A este propósito, importará dizer que a inteligência emocional precede quase sempre a inteligência racional, isto é, se o Alto Alentejo não for um território-desejado muito dificilmente será um território ambicioso e criativo. Por isso, mesmo, a importância decisiva de fatores como a paisagem e o património, a ciência, arte e cultura, na transição da região smartificada para a região inteligente e criativa. Ora, se tivermos em devida conta o equilíbrio entre as três inteligências – emocional, racional, artificial – talvez possamos assistir ao renascimento desses territórios, desta vez sob a forma de ecossistemas inteligentes de acolhimento, as nossas regiões-cidades inteligentes e criativas do século XXI.
A terminar, é bom não esquecer que os distritos são circunscrições eleitorais, é lá que elegemos os nossos deputados e que, nessa condição, eles estão obrigados a realizar constantemente um exercício de inteligibilidade do território que representam. E porque não refrescar a sua representatividade política através desta inovação digital, a região-cidade inteligente?
Finalmente, e talvez mais importante, as regiões-cidades inteligentes, pela sua escala, massa crítica, recursos e criatividade, seriam a coluna vertebral de que o país tanto necessita para reequilibrar os excessos de localismo e centralismo, ou seja, a grande via arterial no interior do país para combater os dois excessos endémicos que explicam os desequilíbrios territoriais do país. A paisagem e o património, a ciência e a tecnologia, a arte e a cultura, e o ator-rede incumbente, podem fazer pequenos e grandes milagres, por isso, vamos fazer da região-cidade o território dos nossos desejos e da nossa esperança.