Este jornal publicou um artigo sobre terapêuticas alternativas há umas semanas. É um bom trabalho jornalístico, com fundamentos claros e que se presta a uma análise consequente. Tem sido difícil encontrar uma boa designação para as intervenções terapêuticas que se fazem fora do quadro “convencional” da medicina moderna. No fundo, tudo o que se faz em medicina tem alternativa, até a de nada fazer, pode complementar o processo terapêutico – veja-se o caso da dieta que é parte essencial do tratamento em inúmeras situações –, ou pode ser uma abordagem inovadora e, por isso, não convencional. Sendo assim, encontrar um termo que consiga agregar todo o conjunto de intervenções terapêuticas que fogem aos cânones do habitual – o que for mais frequente no espaço denominado de “ocidental” – não é tarefa fácil. Portanto, a designação de terapêuticas alternativas, complementares, tradicionais, populares ou não convencionais está dependente do contexto e pode variar para cada tipo de intervenção ou tratamento em causa. A Organização Mundial da Saúde (OMS) prefere uma designação mais longa: Medicina Tradicional, Complementar e Integrativa. No documento estratégico 2014-2023 para estas medicinas pode ler-se que “reforçar a qualidade e a segurança, o uso correto e a efetividade das terapêuticas tradicionais e complementares, através da regulação da prática e dos praticantes” é um objetivo da OMS.

Porventura, seria mais fácil separar em tratamentos baseados em evidência científica daqueles que não têm evidência científica que os sustente. Esta solução parece simples, mas não é. Infelizmente, nem tudo o que se pode fazer com medicamentos ou outras intervenções terapêuticas, mesmo quando aprovadas por organismos reguladores, tem uma base científica inquestionável. Por outro lado, há circunstâncias em que é preciso intervir com soluções que se suspeita serem altamente eficazes, pese embora não serem procedimentos regulamentarmente autorizados.

Em Portugal há uma lei sobre terapêuticas não convencionais, aprovada em 2003 na Assembleia da República (AR), que segue uma definição algo obscura: “consideram-se terapêuticas não convencionais aquelas que partem de uma base filosófica – não científica – diferente da medicina convencional e aplicam processos específicos de diagnóstico e terapêuticas próprias”. Em 2013, confrontados com 10 anos de não aplicação de uma lei da República, foi preciso fazer um diploma que permitisse a aplicação da legislação em vigor e clarificasse o que podia e deveria ser feito para introduzir algum rigor na prática das terapêuticas legalmente denominadas como “não convencionais”. A partir de 2013 o rol de práticas que a lei aceita e regula passou a ser o seguinte; a) Acupuntura; b) Fitoterapia; c) Homeopatia; d) Medicina tradicional chinesa; e) Naturopatia; f) Osteopatia; g) Quiropráxia. Note-se que a Medicina Tradicional Chinesa (MTC), introduzida só em 2013, não fazia parte da proposta do ministério da saúde por ser nosso entendimento que não se deveria regular sobre uma “outra” medicina e porque os procedimentos usados na MTC já estariam todos abrangidos nas terapêuticas elencadas em 2003.

A partir da lei de 2013, o exercício de qualquer destas disciplinas ou técnicas de intervenção com intenção terapêutica só pode ser exercido por profissionais registados e devidamente credenciados, à exceção dos médicos que já podiam e podem usar qualquer intervenção que considerem indicada. Em boa verdade, um dos problemas da legislação em vigor foi a inclusão da acupunctura, da osteopatia e da quiropráxia na lista das terapêuticas não convencionais, já que a sua base de utilização médica está razoavelmente estabelecida e até implementada em termos académicos, e de utilização, em Países como os Estados Unidos ou o Reino Unido. A acupunctura tem uma explicação fisiológica clara, muito para lá dos meridianos chineses. As manipulações podem ser parte de intervenções em contextos de dores articulares, por exemplo. As acupunctura, osteopatia e quiropraxia são melhores do que medicamentos? Não necessariamente, nem sempre, dependendo dos indivíduos e das situações clínicas. Não são panaceias e há riscos associados, como em tudo, incluído o de atrasar diagnósticos. No entanto, quantos doentes com cancro andaram em consultas de dores nas costas, vistos por este e aquele, fizeram radiografias e ouviram opiniões, antes de chegarem a alguém, igualmente médico, que finalmente coloca a hipótese diagnóstica correta. Pode acontecer a qualquer um e até aos melhores médicos. Ensinaram-me há anos que “só diagnostica quem pensa”, mas “raro é mesmo raro e frequente é o que é frequente”.

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Diga-se, em abono da verdade, que também a homeopatia tem créditos na Alemanha e na França, mesmo junto da comunidade médica geral, o que me parece um contrassenso dada a falta de evidência científica, para já não falar dos pressupostos físico-químicos absurdos que a sustentam. Repare-se que a podologia, ao invés da osteopatia, por força da possibilidade que nos foi dada de elaborar diploma próprio, não é terapêutica não convencional.

Tive a subida honra de ser citado no livro A Ciência e os Seus Inimigos, de Carlos Fiolhais e David Marçal, obra interessante, escrita por quem não conhece os processos clínicos e as complexidades da relação terapêutica – tanto que poderíamos escrever sobre o efeito placebo e a sua utilidade em medicina –, mas com posição firmada no meio académico e merecedores da maior consideração. Em boa verdade, a inclusão do meu nome apenas foi feita no contexto de aceitarem os meus conhecimentos sobre ciência médica básica e deixarem alguma nota de implícita perplexidade por ter assinado e subscrito – admito até a autoria de partes dos textos – as normas definidoras e reguladoras das práticas denominadas de “não convencionais”. Bem mais brandos e educados do que outros comentadores, incluindo colegas de reconhecida boçalidade, que se estenderam em considerações pouco curiais e nada contributivas para o debate que ainda tem de ser feito sobre o lugar da terapêutica, seja ela o que for, em medicina humana.

Quando fui chamado a legislar, o meu conflito de interesses era claro e mantém-se nos mesmos moldes. Na falta de melhor critério prefiro só usar ou recomendar, quando possível, métodos com provas dadas em estudos de base científica ou com uso suficientemente estabelecido para poder antecipar benefícios e riscos. Notem que os médicos, todos e sem exceção, ainda usam muitos tipos de intervenção e semiologia que está escorada na tradição e, muitas vezes, apesar da prova do tempo, sem estudos que sustentem esse conhecimento. No entanto, independentemente das minhas crenças e formação médica havia uma lei para cumprir e era preciso terminar um processo iniciado em 2003, mas que nunca tinha sido abordado de frente por sucessivos governos.

Ora, com a “relutante” – mas muitíssimo colaborante, imprescindível, esclarecida e esforçada – companhia do meu colega secretário de Estado do Ensino Superior, tivemos de cumprir a legislação da República e proceder à regulamentação de profissões que agora são responsabilizáveis, com registo profissional, com formação obrigatória, de acordo com o que se passa no resto da UE, com um quadro que não deixará margem para dúvidas judiciais. Por exemplo, ao contrário do que alguns dos interessados pretendiam – muitos sem nenhuma habilitação –, exige-se uma licenciatura para exercer estas profissões. Por força da lei, até foi preciso prever licenciaturas que não existiam na Europa. Fizemos mal? As alternativas, face ao processo de Bolonha, seriam todas piores. Nesta lógica, o governo agora em funções entendeu regular a formação nestas terapêuticas. Não poderia ter sido de forma diferente. Quer isso dizer que o Ministério da Saúde apoia a aplicação de alguma delas ou favorece qualquer tipo de intervenção de caráter menos claro em termos fisiológicos ou fiso-patológicos? Claro que não. Não me parecem justas as críticas da Ordem dos Médicos aos diplomas sobre ciclos de estudos em terapêuticas não convencionais. O governo atual cumpriu a lei, tal como já tinha sido feito em 2013 e 2014.

O exercício de “endireitas”, “bruxos” e “curandeiros” está ilegalizado e, convenhamos, querer acusar de exercício ilegal da medicina os acupunctores acreditados, quando já havia médicos a fazer acupunctura, ou os osteopatas e quiropráticos diplomados em universidades estrangeiras, quando há fisiatras e fisioterapeutas a praticarem técnicas de osteopatia e quiropráxia, parece um pouco excessivo.

Note-se que todas as portarias que regulam as terapêuticas não convencionais preveem que o terapeuta tem de: “Não causar dano deliberado ou prejudicar o cliente, em qualquer circunstância, no âmbito da sua profissão; Encaminhar o cliente, sempre que necessário, para o profissional de saúde melhor habilitado a tratar a situação de saúde do mesmo; Não criar falsas expectativas relativamente aos resultados esperados com o tratamento; Não tratar pessoas com situações que se verifique não serem suscetíveis de qualquer melhoria do seu estado de saúde através da [terapia em causa]; Aplicar apenas os tratamentos úteis e necessários à manutenção ou recuperação da saúde da pessoa; Elaborar um plano de tratamento que conte com a participação ativa e consentida do cliente, onde conste o prognóstico, os resultados a atingir, os métodos e técnicas terapêuticos utilizados e a avaliação regular do seu progresso”. Sinceramente, julgo que há normas de proteção do cliente em quantidade e de forma suficientes. A ausência de regulação é que era um cenário preocupante. Com a legislação nacional cumpriram-se os desígnios e recomendações da OMS.

Há zonas cinzentas que ninguém quer clarificar. Por exemplo, os medicamentos homeopáticos, à luz da legislação europeia, são avaliados pelo INFARMED, embora sob princípios diferentes – se fossem usados os princípios que se usam para os medicamentos “normais” os homeopáticos chumbariam todos, já que nem substância ativa lá se encontra, é tal o nível de diluição. Mas há um enorme conjunto de produtos que não são classificáveis e se vendem livremente em ervanárias e lojas dos chamados “produtos naturais”, sem nenhum controlo sanitário específico, e ainda há os suplementos alimentares que também não estão sob a alçada da saúde, infelizmente.

A verdade é que, sem deixar de sublinhar os exemplos de toxicidade e má prática que o artigo de Vera Novais apresentou, toda a intervenção diagnóstica e terapêutica, seja convencional ou não, está sujeita a efeitos adversos, ao risco de mortalidade e à má prática. Naturalmente desconfio do que não conheço e não uso mezinhas ou plantinhas, nem chás ou qualquer outro tipo de medicamentos sem certificação. Já não é preciso, nem a canábis que os nossos deputados quiseram aprovar, tratar com chás de ervas ou cigarros de enrolar. Ninguém usa ópio. Usa-se morfina e fentanilo. Não se coloca bolor em feridas. Há penicilina.

Há médicos – seguramente bem habilitados no que diz respeito ao diagnóstico e à escolha do melhor tratamento – que usam medicamentos homeopáticos e naturais, quem sabe, na busca de um efeito placebo. Ou, porque não, saibam mais do que eu? Não há lugar à arrogância quando se pretende ajudar e tratar alguém. Há, isso sim, lugar à devoção ao conhecimento cientificamente demonstrado, ao estudo, à paciência e à compaixão. O melhor conselho que posso dar é nunca procurar tratamentos, seja do que for, sem começar por consultar um médico, um licenciado em medicina inscrito na Ordem dos Médicos, e seguir as indicações que ele lhe der.

P.S. – Há uns dias tive ocasião de tomar conhecimento do falecimento da artista Isabel Laginhas. Soube da triste notícia pela leitura de uma sentida e nobre homenagem que o Dr. António Costa publicou num jornal diário. As elegias de um primeiro-ministro não podem ser só para os politicamente relevantes. O Dr. António Costa, confesso, não me surpreendeu no tom com que lembrou a Isabel. Compreendi-o bem. Tive ocasião de conhecer pessoal e proximamente a grande criadora plástica que foi Isabel Laginhas. Infelizmente, circunstâncias profissionais ditaram o meu afastamento dessa pessoa de generosidade e sensibilidade invulgares. Terminado o meu impedimento temporário, não tive forma de voltar a encontrá-la. Deixo-lhe a minha homenagem. No termo da sua vida mais nada posso dar.