Há pouco mais de uma semana, a 31 de Março, celebraram-se os 50 anos da última ovação do Estado Novo. Daqui a pouco mais de duas semanas, estaremos a celebrar os 50 anos da revolução que pôs termo ao regime. Em Depoimento, Marcello Caetano escreveria: «Quando o alto-falante anunciou que eu me achava no camarote principal, a assistência, calculada em 80.000 espectadores, como que movida por mola oculta levantou-se a tributar-me quente e demorada ovação que a TV transmitiu a todo o País. E note que, tendo saído do estádio quinze minutos antes do fim do desafio, não houve ninguém nas duas longas filas de pessoas que, como eu, procuravam evitar a confusão do final e por entre as quais passei que não me desse palmas – o que às pessoas que me acompanhavam pareceu ainda mais expressivo que a manifestação colectiva. E as informações que chegavam ao governo também garantiam sossego geral e apoio ao regime».
É talvez a história mais mal guardada das últimas décadas: como é que um país que estava à beira de uma revolução apresentava, nem um mês antes de essa revolução se dar, um estádio com 80 mil pessoas ovacionando o chefe de uma ditadura? A narrativa intelectual e política das últimas décadas nunca soube responder a esta pergunta de forma convincente. António Araújo, pelo contrário, deu-nos as pistas necessárias para chegar a melhores conclusões que não as do romantismo da intelectualidade marxista instalada. Nesta entrevista ao Público, em 2018, elucidava Araújo: «A permanência de Salazar não se explica pelo insucesso dos oposicionismos, que eram minoritários. Há muitos estudos sobre a oposição, mas não há ainda um sobre como é que Salazar administrava uma coisa fundamental que era a cunha, como é que ele dominava o país. (…) É muito mais importante estudar como é que Salazar dominava os conformistas do que como é que esmagava os oposicionistas. Porque isso está feito no essencial e porque o grosso da sociedade portuguesa vivia num medo difuso. O português médio não se metia em aventuras oposicionistas e muito menos bombistas. O que é que explica o conformismo instalado? (…) É muito simplista explicar esse conformismo apenas com o medo. A sociedade vivia toda aterrorizada como se vivêssemos num regime totalitário? Mesmo nos regimes mais totalitários vê-se que não era assim. (…) O salazarismo soube capitalizar a necessidade das pessoas que vinham da província e queriam um emprego para a vida, dos escriturários que colocavam os sobrinhos nas repartições, dos conterrâneos que se ajudavam entre si, dos padrinhos e afilhados. (…) Claro que as pessoas viviam num pavor típico de uma sociedade com autoridades ditatoriais. Mas é preciso explicar o conformismo. Explicar como é que se dominavam as Forças Armadas colocando generais nos conselhos de administração das empresas, dando-lhes um rendimento para os calar e abafar as veleidades conspirativas que tivessem. (…) Devemos procurar a chave de como é que Salazar conseguiu domesticar e manter o conformismo, não só das elites, criando ele próprio as elites que lhe eram próximas, mas também de segmentos mais baixos, através de prestações sociais e de uma hábil gestão da cunha. Porque receber uma casa dos bairros sociais, ter os transportes pagos, ou a assistência médica, ainda que incipiente, eram tudo formas de fidelização das pessoas com salários baixos. Temos de pensar que as pessoas viviam em estado de carência. Todos procuravam safar-se. Eles, a sua família, os seus padrinhos. Ter um tio na Guarda Fiscal era importante.»
De facto, é curioso que o movimento que depôs a ditadura não se tenha dado por movimentações populares ou políticas, mas militares, depois de 13 anos de guerra, não só mas também motivados por uma causa que em nada se desliga de tudo isto. Como declarou em tempos Otelo Saraiva de Carvalho: «Tudo isto se avoluma, de facto, em consequência da Guerra Colonial, quando em Junho de 1973 é publicado um primeiro decreto-lei do Governo, da autoria do ministro da Defesa e do Exército (creio eu que era o general Sá Viana Rebelo), em que, na perspectiva política do Governo de continuidade da Guerra Colonial, nos termos físicos dessa política, para dar continuidade a essa guerra, são necessários capitães. E, portanto, para inventar capitães, o Governo lança esse decreto-lei de abertura das fileiras do quadro permanente a antigos milicianos que já tivessem feito uma comissão, de preferência, mas que, mediante um estágio de seis meses na Academia Militar e mais um estágio de seis meses na Escola Prática, eram feitos capitães. Recuperavam a sua antiguidade como tenentes milicianos e, com isto, integrados no quadro permanente, muitos deles passavam à frente da malta do quadro, que estava ali a batê-las desde a Academia Militar. Isto provocou um sururu muito grande na malta militar, nos capitães. E é aí que vai nascer o movimento dos capitães.»
Recordo tudo isto a propósito do recente episódio da eleição do novo presidente da Assembleia da República e de uma troca de argumentos entre uma jornalista da SIC e o deputado Pedro Frazão, do Chega. Frazão justificava a tomada de posição da sua bancada parlamentar, bloqueando uma normal eleição de Aguiar Branco para o cargo, invocando o conluio entre PSD e PS para mais uma «distribuição de tachos». A jornalista perguntava-lhe se com isso queria dizer que Diogo Pacheco de Amorim, também deputado do Chega na mesma ocasião eleito vice-presidente do Parlamento, tinha também sido eleito para um «tacho» – procurando explicar que o cargo em si não era um tacho, mas um cargo de representação institucional. Frazão tentou explicar que o caso de Pacheco de Amorim não era um tacho, antes um lugar inteiramente merecido, porque não decorria de um conluio celebrado entre os partidos do sistema.
Miguel Poiares Maduro escreveu no Expresso da passada sexta-feira um texto interessante sobre como lidar com o populismo, elencando, entre outros, o problema da representatividade democrática. Ora, nesta questão da representação política não deve ficar de fora este dado: a cultura do compadrio e da cunha, habilmente gerido por Salazar, foi, durante anos, algo que funcionou na sociedade portuguesa de alto a baixo, e existe hoje uma percepção de que esses mecanismos funcionam cada vez mais apenas e exclusivamente para a elite política, económica e social do país. Por exigência democrática, as instituições e as funções do Estado regem-se hoje mais por concursos público, por regras de admissão, facilitando menos a vida a quem, não sendo particularmente dotado de uma boa rede de contactos junto da esfera do poder, ambiciona um emprego, uma colocação, um salário melhor. Esse foi um passo positivo no sentido da transparência, da democraticidade e da meritocracia, mas os partidos não acompanharam essa evolução, permitindo gerar-se a percepção – na maioria das vezes justificada – de que a realidade de um país que permanece arredado da esfera dos pequenos poderes coexiste com a vida de quem, mesmo que sem competência ou habilitações para o efeito, obtém o que pretende graças a um cartão partidário.
A 27 de Julho de 2020, André Ventura escreveu no Twitter: «Discordo de António Oliveira Salazar em muita coisa, muita mesmo: eu sou um defensor da liberdade de expressão e de imprensa, da força dos mais pobres e do desenvolvimento económico português. Mas espero acabar como ele: pobre e incorruptível. E intransigente com a escumalha!» No dia seguinte, anotei no Facebook que, ao contrário do que muita gente então julgava, era possível que Ventura fosse um político muito inteligente e que soubesse ler o lado mais pobre do carácter dos portugueses. E, com efeito, parece-me hoje cada vez mais evidente que assim é. O Chega terá 1 milhão e 100 mil votos por 1 milhão e 100 mil razões. Mas uma delas será, sem dúvida, esta: não há entre nós uma particular cultura de transparência, integridade e anti-corrupção, mas antes um sentimento generalizado de vingança quando a corrupção, a cunha e o compadrio só beneficiam alguns em detrimento de quase todos. O problema por cá nunca é a corrupção que se pratica, mas o facto de ela só beneficiar uma cúpula política, económica ou social. Nenhuma democracia sobrevive assente numa partidocracia que permite tudo aos seus e que aos outros decide aplicar a lei. Nem a ditadura sobreviveu a um constrangimento corporativo, quanto mais uma democracia.