“Não vos deixeis intimidar nem pela casta política nem pelos parasitas que vivem do Estado”
Javier Milei, em Davos
Judas não gastou ali solas de sapato: uma aldeia pequenina, encravada nas ásperas serranias dos montes hermínios, longe de tudo. Nos anos 30 viu o Estado roubar-lhe o baldio e a explorar pinhais por lá; nos anos 50 viu nascer um empreendimento hidroelétrico, mas isso não significou eletricidade nas casas; nos anos 70, quando já existiam autoestradas, a estrada ainda era de terra batida, e era nova.
Depois veio a revolução dos cravos. Mas 50 anos depois, e apesar da taxa audiovisual cobrada, os telemóveis continuam sem rede, há três décadas que o único transporte público foi suprimido (com a privatização da rodoviária), não há esgotos e o abastecimento público de água está por fazer. Não que não haja água nas torneiras, porque há. Há é uma guerra acesa entre a meia dúzia de gatos pingados que lá vivem (os últimos de uma comunidade que durante séculos e até há poucos anos se habituaram a viver à margem do poder, contando uns com os outros, e tendo assim moinhos comuns, fornos comunitários, chafarizes, eiras, etc., até à mais recente casa do povo) e a toda poderosa APIN.
A APIN, Empresa Intermunicipal de Ambiente do Pinhal Interior, é a empresa a quem a Câmara Municipal concessionou a água – abastecimento, esgotos – e o lixo. E como disse acima, a questão da água tem sido problemática e sem resolução à vista – a Associação local criou uma infraestrutura de recolha, armazenamento, tratamento e uma rede de abastecimento (pela qual cobrou ligação à rede), isto numa altura em que se não o fizesse mais ninguém o faria, e agora está renitente em ceder o que construiu a troco de contadores e cobranças. Há meios para resolver a questão, designadamente tribunais, mas por ora, não passa de uma conversa de surdos.
Mas não é disso que vos venho falar. É que a APIN também faz, pela Câmara Municipal que é a responsável legal, a recolha de resíduos domésticos. E foi neste serviço que nasceu outra guerra.
Também aqui há uma história: há muito tempo atrás? Não havia lixo. Num pequeno mas grande livro (Portugal: Paisagem Rural), o Arq. Henrique Pereira dos Santos explica como era este viver rural em que o último elo da cadeia agro-pastoril era o curral do porco. Mas depois vieram as garrafas, o papel, as embalagens, os sacos, etc. E assim, cada aldeia tinha, até aos anos 90 do século passado, uma lixeira a céu aberto. Eis que, novamente de forma comunitária (e como também nasceu a piscina ou o ringue de futebol), a aldeia construiu uma incineradora. Felizmente – porque no verão, com muito lixo para queimar, a aldeia ficava envolta numa nuvem de fumo mal cheiroso e tóxico – um ou dois anos depois chegou finalmente o sistema de gestão de resíduos, que trouxe contentores do lixo, visitados um ou dois dias da semana pelo camião de recolha. Foi bom, durante quase 30 anos, mas como “não há mal que sempre dure nem bem que nunca acabe”…
As pessoas fazem lixo. Recolhê-lo e dar-lhe destino tem custos. Pelo que o serviço se financia com uma taxa. Normalmente pagamos essa taxa na fatura da água. Mas ali ainda não há faturas de água. Isso não invalida que a cobrança se faça por outros meios. Quem a deve cobrar que arranje um meio de o fazer… O meio da APIN? Um contrato. Um contrato que, dadas as divergências em matéria de água, e também uma perceção de injustiça entre os poucos moradores que produzem lixo o ano todo e os que apenas o fazem nos 15 dias de férias que lá passam, quase ninguém assinou.
Como resolver o problema? Eu não sei. Sei que há muitas maneiras de se matar pulgas. Ou seja, de saber quem deve pagar e, não o fazendo, qual a contraordenação aplicável. Por via postal por exemplo? ou pela Autoridade Tributária? Ou a APIN imputando o custo à Câmara Municipal e esta que arranje forma de aplicar o regulamento aos eleitores que a elegem? Em último recurso, os tribunais servem para isso mesmo.
O que não passa pela cabeça de ninguém, ou pelo menos de ninguém com dois dedos de testa, é uma empresa prestadora de serviço público recorrer à chantagem. Convencida que é a dona do feudo, a APIN fez o quê? Retirou os contentores da aldeia, colocando-os no ramal da estrada e obrigando os poucos velhotes que ali vivem a fazer mais de um quilómetro se quiserem pôr o lixo no contentor – coisa que é um dever, como é dever da CM ou entidade por si concessionada disponibilizar contentores a uma distância máxima de 200m.
E nem por aqui ficam as guerras. A serra encheu-se de eólicas e a Junta de Freguesia recebeu o dinheiro chamando baldios a terrenos particulares. Mais recentemente, CM e JF inventaram um mapa que querem verter em PDM com os supostos baldios que inexplicavelmente passaram de 1800 ha na década de 60, em pleno Estado Novo, para 3800 ha na versão atual. Um roubo de 2000 ha de propriedades privadas e que pagam impostos enquanto tal…
E é isto. A aldeia chama-se Castanheira, a Freguesia Fajão, o Concelho Pampilhosa da Serra. Mas guerras destas passam-se em muitos outros lados de um país que tem tudo menos “amigos da coesão” como António Costa e seus “amigos” se autointitularam há uns tempos. Guerras de água ou lixo ou mato e pedras, enquanto se discutem os milhares de milhões para um TGV ou para um novo aeroporto. Guerras contra idosos a receber pensões de miséria e apoio domiciliário, como se não lhes bastasse estar a 35km de uma licença municipal para matar um cabrito para o almoço de domingo ou a 100km de um hospital. Ali longe, onde já poucos resistem – tão poucos que já não se levantam como dantes com forquilhas e enxadas contra os abusos do Estado seja por omissões seja por imposições – é onde esperam que se venham instalar novos povoadores rurais?