1Muitas peças na comunicação social se têm feito sobre a primeira fase de entrada no ensino superior. A maior parte delas repete os cursos com nota mais elevada, numa espécie de elegia em eco à Engenharia Aeroespacial que, por ter tido sucesso junto do público juvenil, tornou-se em 3 anos a cereja de topo de cinco Universidades: Porto, Lisboa, Braga, Aveiro e Covilhã. E com isto, quase 50.000 alunos entram nas nossas universidades sem nos interrogarmos como tal se relaciona com o futuro do país na sua capacidade de resposta aos desafios de resiliência demográfica, de investimento e retorno económico, de capacidade de reter e atrair talentos.

É claro que o facto de o curso de Engenharia Aeroespacial, criado em 1991 no IST – com 35 vagas, e actualmente com 135 – ser, desde 2019, o curso que lidera a 1.ª fase de Concurso ao Ensino Superior nos deve fazer reflectir sobre a relação entre a Universidade Portuguesa e o futuro. Não apenas em relação ao futuro do país, mas mesmo ao do planeta.

Desde logo, o ritual de passagem da juventude à idade adulta parece, para muitos jovens, configurar uma dupla viagem: primeiro saem de casa dos pais para irem para a universidade e, depois, saem do país, para terem emprego. Este padrão leva a que as Universidades e Politécnicos do Interior tenham ainda menos gente e muitas vezes compactem aquela viagem (universidade-estrangeiro) por exiguidade financeira familiar.

Uma reflexão económica é também requerida. Formar especialistas é um circuito de acumulação de capital (de facto o 3.º circuito cronológico de investimento, a seguir ao industrial e ao imobiliário) suportado grandemente pelos contribuintes em Portugal. Isto quer dizer que nós, os portugueses, com o nosso dinheiro, estamos a apostar em determinadas licenciaturas para a nova geração, e investimos nelas esperando um retorno para Portugal daqui a 10 anos (por exemplo, pois não conheço qualquer planeamento a este nível). Ora formar cerca de 240 engenheiros aeroespaciais por ano… não deverá ser para trabalhar em Portugal! Quanto aos cursos de saúde que este ano estiveram muito bem representados (Medicina e Enfermagem) também há já muitos jovens a entrar pensando desde logo em sair do país na primeira oportunidade. Convinha, mais uma vez, fazer um inquérito sociológico em relação a tais expectativas à entrada.

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Em relação ao talento (e tal é um aspecto fulcral, pois os estudantes entram nos cursos top 10 com médias acima de 18), há que perguntar de que forma o país ganha. Ao mesmo tempo que temos políticas públicas fiscais para atrair talentos, discriminando quem cá fica, estamos a formar quadros (em princípio de excelência) para irem embora!

Algum leitor, tipicamente português, e que logo encontrará uma crítica a fazer ao texto, há-de perguntar: ‘E então? Que mal é que há em formar para a globalização? Não estamos num sistema aberto?’ A resposta é que não há mal nenhum desde que se planeie e que se analise as vantagens daí decorrentes. Há países (Inglaterra, Estados Unidos) que têm como objetivo ser a infraestrutura intelectual do mundo. Nós, que eu saiba, não temos qualquer planeamento em relação a isso.

Mas vamos aceitar, e parece-me adequado fazê-lo, que os jovens estão a ‘ler’ o século XXI e é por isso que estão a escolher a Engenharia Aeroespacial e a Inteligência Artificial e outros cursos desse espectro é essa procura que está a forçar as Universidades a uma determinada oferta. Ora bem, mas então aqui há uma falha: é que as Universidades têm a responsabilidade de também apresentar aos jovens (e aos cidadãos em geral já agora) uma leitura do século XXI que justifique a oferta. Pelo menos eu não vi em nenhuma das intervenções de responsáveis universitários tal esforço.

2 O século XXI apresenta-nos um dilema que, porventura, para muitos não está claro: o dilema entre sustentabilidade humana e sustentabilidade do planeta. O século XXI é obviamente o século da consciência da sustentabilidade, no sentido em que vivemos num sistema interdependente eco-social. Trata-se de uma consciência ao mesmo tempo dos limites do planeta, da acção prejudicial do ser humano e do capitalismo industrial, da crise e urgência climática (o chamado mau Antropoceno) e da necessidade pensar o futuro, de acção, de transição e, mesmo, de transformação regenerativa (entendido como bom Antropoceno). Essa consciência da sustentabilidade propôs, pelos ODS, pensar as Pessoas, o Planeta, a Paz, a Prosperidade e as Parcerias como uma ética eco-social ou Planetária-e-humana.

Mas o conceito de sustentabilidade esconde (e revela) dois extremos que por vezes emergem:

a) O ser humano é o problema e o planeta terra sobreviverá à nossa extinção;

b) o ser humano é mais importante do que o planeta e está destinado a ser uma espécie interplanetária.

Estes extremos têm alimentado uma divisão: a defesa do planeta por um lado, ou da excepção humana por outro, revelando já práticas sociais e, até, posições teóricas diferenciadas. De facto, trata-se de perguntar: Planeta B ou não, eis a questão! Ou, glosando Shakespeare: To B or not to B, that is the question.

Em 2015, ao mesmo tempo que era publicada a Agenda 15-30 do ODS, evidenciando aquela ética de interdependência eco-social, a Space X de Elon Musk, depois de muitos fracassos, conseguia pousar com sucesso o primeiro foguetão, tornando-os assim reutilizáveis e reduzindo drasticamente o custo dos voos espaciais. Elon Musk com a Space X e Jeff Bezos com a Blue Origin são os representantes da vertente prática da sustentabilidade humana acima de tudo, afirmando que nós só seremos sustentáveis enquanto espécie quando estivermos pelo menos em mais do que um planeta. Já, do outro lado, Rob Hopkins, um divulgador da permacultura e do planeamento colaborativo de transição urbana (carbónica, tecnologias verdes e economia circular), criador do movimento global ‘Transition Network’ desde 2006, é um defensor da necessidade de cuidar do planeta, das pessoas em comunidades locais de forma integrada, relocalizando as nossas vidas.

Este dilema entre sustentabilidade humana e sustentabilidade planetária tem já bases teóricas de confronto. Por um lado, a chamada ‘modernização ecológica’ que procura continuar a ideia de modernização e a sua enfase no crescimento económico e na tecnologia; por outro lado, as ‘teorias do decrescimento’, que defendem a relocalização da economia, com enfase para a noção de comunidade, energias renováveis numa sociedade pós-materialista. Este dilema em parte é mais um eco da tensão de toda a modernidade desde o século XVIII entre utopias comunitárias e progresso ilimitado. A história não se repete mas rima. Essa tensão evidenciou-se claramente no ‘Novo Mundo’ onde, ao mesmo tempo que comunidades tornaram práticas as suas utopias (por exemplo os Amish); o progresso ilimitado foi o padrão. No século XIX, o capitalismo liberal, por um lado, e socialismo/comunismo, por outro, foram um outro exemplo com evidências práticas ao longo de todo o século XX. É natural, portanto, que o dilema do século XXI entre tecno-explosão e decrescimento ao invés de se resolver por um dos polos, crie antes universos de práticas concorrentes em cada país e ‘estratégias de especialização inteligente’ de regiões e países. E é aqui que voltamos a Portugal, às Universidades e às escolhas destas e dos nossos jovens.

3 Tudo o que acabei de dizer pode ser whishful thinking se Engenharia Aeroespacial se relacionar diretamente com os drones e a guerra!  Por parte dos jovens…ou das universidades: esperemos que não! Partindo da visão de futuro exposta, é compreensível que jovens que, entrando no mercado de trabalho nos anos 2025-30 e, portanto, tendo uma vida ativa até 2065-70, queiram participar ativamente nas aventuras do século XXI. Isto se a ‘singularidade ´tecnológica’, prevista para entre 2025-70, não der cabo disto tudo! Escolher o futuro implica ter uma visão sobre o futuro. Se a visão que as Universidades Portuguesas dão é enviesada para o lado das engenharias da tecno-explosão, não é de admirar que a escolha vá por aí. Em Portugal a palavra ‘sustentabilidade’ ou ‘sustentável’ por alguma razão não se instalou na oferta universitária. Nenhuma das grandes universidades, Lisboa, Porto, Aveiro, Coimbra, Minho, tem qualquer licenciatura com o conceito sustentabilidade. Mais: licenciaturas em Sustentabilidade ou em Estudos ou Ciências de Sustentabilidade (já muito comuns no estrangeiro) não existem simplesmente em Portugal. Podemos ainda dizer de outra forma e perguntar aos reitores das nossas universidades: um jovem com interesse na vertente da sustentabilidade planetária, porventura empenhado no movimento ecologista, ou que tenha interesse (ou tenha feito) nos cursos de design, como o PDC (Permaculture Design Course) e o EDE (Ecovillage Design Education); e interesse no decrescimento sustentável e transformação social  (por exemplo, ‘Dragon Dreaming’, ‘processos regenerativos’, ‘Holocracia’, ‘Sociocracia 3.0’, etc.) que tipo de licenciatura seria adequado seguir? Ou estará este jovem também condenado a ir para o estrangeiro, mas logo para fazer a licenciatura?

Dito ainda de outra forma, há toda uma tendência de empregos verdes e sustentáveis na Europa e no Mundo, mas tal não é muito evidente na oferta de licenciaturas em Portugal. A ‘Agenda Territorial Europeia’ 2030, que saiu em 2020, apresenta como objectivo, criar ‘Um Futuro para Todos os Lugares’ mas não é claro como as universidades portuguesas estão a contribuir para tal propósito.