Os artistas que irão actuar na Festa do Avante! deste ano, em Setembro, têm sido alvo de críticas por alinharem no comício da rentrée do PCP. Eis uma novidade interessante no espaço público português: a festa do Avante! realiza-se anualmente há décadas mas em 2022 iniciou-se uma censura social aos artistas que nela participam. O que justifica a alteração? Putin e a guerra provocada pela Rússia na Ucrânia, que o PCP vê pelas lentes do Kremlin. Ora, se o escrutínio é legítimo, convém que a crítica seja certeira.
Sejamos claros: por si só, actuar na Festa do Avante! não significa adesão às posições do PCP, nem merece crítica. Isto é válido agora, com guerra na Ucrânia, como era válido antes da invasão russa, porque o PCP não mudou em 2022: é, desde que foi fundado, um partido de matriz totalitária e apoiante de vários regimes que oprimem e perseguem as suas populações. Ou seja, por um lado, se não se pode fazer de conta que tocar na Festa do Avante! é o mesmo de tocar no Vilar de Mouros, por outro lado, é injusto fazer dessa actuação um acto automático de apoio político.
Ao longo de décadas, a Festa do Avante! acolheu dezenas de grandes nomes da música portuguesa e seria irrazoável pressupor que todos estes são militantes, simpatizantes ou eleitores do PCP. Tudo normal: são profissionais da música, foram contratados para trabalhar e fizeram o seu trabalho. Alguns sentiram-se politicamente em casa, outros não. O mesmo se aplica a todos os profissionais que trabalham no evento, desde quem trata do catering aos técnicos de som — estão a trabalhar, não estão a assinar cartões de militância partidária. Se me perguntarem a mim, o meu repúdio ideológico pelo comunismo faz-me preferir que as bandas que mais estimo não ponham o pé na Festa do Avante!, mas não censuro as que o fizeram. Numa sociedade pluralista, aberta e democrática, um profissional de música não deve temer perseguições por aceitar trabalhar num determinado evento, mesmo que de natureza partidária.
Isto vale tanto para o PCP (antes ou depois da invasão russa da Ucrânia) como para o Chega. Recordo que, em 2020, Olavo Bilac foi alvo de críticas por ter actuado num pequeno evento do Chega. Possivelmente por receio de “cancelamentos” que o prejudicasse profissionalmente, veio rapidamente desculpar-se por tal participação. Ora, tanto as críticas como as desculpas foram ridículas: Olavo Bilac estava a cantar (o trabalho dele), não estava a bater palmas a André Ventura nem a angariar militantes. De resto, com a sua antiga banda (Santos & Pecadores), Olavo Bilac actuou na Festa do Avante! (1998) e não teve de pedir desculpas a ninguém. Em 2020, esta duplicidade de critérios era um absurdo. Em 2022, com a guerra, promoveu-se um absurdo ainda maior: em vez de se aceitar que os artistas trabalhem em eventos partidários sem temerem represálias, a cultura de cancelamento cresceu.
Dito isto, há uma importante distinção a fazer: quem faz política deve ser julgado politicamente. E há artistas que são intrinsecamente políticos — isto é, que utilizam a sua arte para manifestar posições políticas, sob forma de activismos sociais. No caso desses artistas, faz todo o sentido que sejam avaliados politicamente pela (in)compatibilidade das suas posições com a participação no Avante!.
Os artistas não se expressam todos da mesma forma. Há aqueles, como o acima referido Olavo Bilac, que se limitam à música e estão isentos de conotações políticas. E há aqueles, como Bia Ferreira, que olham para a sua produção artística como “política e revolucionária” (neste caso, pelos direitos das minorias sexuais). Ora, no caso de Bia Ferreira, porque a própria obra tem cariz político, justifica-se avaliar politicamente a sua participação no comício dos comunistas e constatar que esta é irremediavelmente contraditória: como bem assinalou Henrique Raposo, o PCP tem um amplo currículo no apoio a regimes homofóbicos e até já houve episódios de homofobia na Festa do Avante!. Ou seja, Bia Ferreira tem aqui um problema de coerência artística. E isso é algo que terá de resolver consigo mesmo e com os seus fãs.
O ponto é este: actuar na Festa do Avante! não equivale a apoiar Putin ou aderir ao PCP. Mas, porque se trata de um evento político, participar nele condiciona politicamente: por exemplo, em coerência, não dá para ser activista LGBT e subir ao palco do Avante!. Lá está, a questão não é a participação na Festa do Avante! per se, mas a incompatibilidade dessa participação com os activismos de alguns dos artistas. O exemplo de Bia Ferreira é gritante e não estará só: as causas pelas quais muitos artistas hoje se definem encontram no PCP um adversário.