Xutos & Pontapés, Dead Combo, Expensive Soul, Clã, Sérgio Godinho, Boss AC, Ana Moura, Santos & Pecadores, Hands on Approach, Ala dos Namorados, Camané, Blind Zero, Belle Chase Hotel, Deolinda, Glockenwise, Bernardo Sassetti Trio, Mafalda Veiga, Bonga, Capitão Fausto. Estes artistas e estas bandas representam apenas uma pequena fracção dos que, nos últimos 25 anos, participaram em edições da Festa do Avante!. Para quem não sabe, convém esclarecer que a Festa do Avante! é um comício do PCP e, como tal, um evento estritamente de natureza partidária – ou seja, um evento que não é equiparável aos festivais de Verão, como o próprio PCP tem feito questão de sublinhar para justificar a realização da edição deste ano, quando todos os festivais foram proibidos.

Ao longo dos anos, a participação destes artistas na Festa do Avante! nunca foi confundida com militância no PCP ou adesão ideológica às suas propostas. Simplesmente, essa associação nunca foi feita porque não seria justo fazê-la. De resto, desconhecendo eu as visões políticas de cada um dos artistas acima mencionados, creio que é seguro dizer que alguns sentir-se-ão em casa, mas também que muitos dos que actuam na Festa do Avante! não são militantes, simpatizantes ou sequer eleitores do PCP. Afinal, tudo isso é normal e compreensível: como profissionais, os músicos são contratados para fazer espectáculos, não para bater palmas nos comícios ou discursar. No futebol, que é igualmente dado a paixões exacerbadas, domina um entendimento semelhante: é possível um treinador ser adepto do clube onde trabalha (Sérgio Conceição, portista e treinador do FC Porto) ou treinar um clube rival daquele que sempre apoiou (Rúben Amorim, benfiquista e treinador do Sporting).

Durante décadas de regime democrático, este entendimento civilizado vigorou, seja para a Festa do Avante!, seja para qualquer outro evento partidário para o qual fossem contratados artistas. Mas esse entendimento ruiu há dias, quando Olavo Bilac (ex-vocalista e fundador dos Santos & Pecadores) foi julgado em praça pública por actuar num evento do Chega! – tendo, inclusive, de se penitenciar publicamente, não fosse ser “cancelado” e tornar-se proscrito, ficando com a sua actividade profissional e o seu sustento em risco. Sim, Olavo Bilac, que já actuou com a sua antiga banda na Festa do Avante! e nunca teve de prestar contas por isso, terá sido ingénuo ao não antecipar o impacto das suas fotografias com militantes do Chega!. Mas a questão é esta: se tocar profissionalmente na festa do Avante! nunca foi confundido com adesão política ao PCP, por que razão haveria de se inverter a regra quando o Chega! é o partido contratante?

Já sei o que me dirão. Que a excepção se justifica porque o Chega! se sustenta no ódio social, porque é iliberal e perturbador da paz social, porque promove um discurso autoritário e de intolerância, onde racismo, xenofobia e homofobia têm lugar cativo. Sim, tudo isso verdade. E, sim, tudo isso torna o Chega! uma ameaça para a desorientada direita portuguesa e, por arrasto, para a nossa democracia. Mas não, infelizmente isso não torna o Chega! excepcional. Veja-se o PCP que, por natureza, é um partido baseado no autoritarismo do “comité central” e na abolição de liberdades individuais, em nome do colectivo partidário – e, nesse sentido, em confronto com as sociedades liberais em que vivemos no Ocidente. Mais ainda, o PCP tem um longo histórico de perseguição social e ainda hoje branqueia sistematicamente os regimes políticos mais sanguinários do planeta: defende a repressão política de Maduro na Venezuela e a entrega de milhões de venezuelanos à miséria; apoiou Assad na abominável subjugação do povo líbio, contra o qual usou armas químicas; glorifica o passado da União Soviética e rejeita a queda do Muro de Berlim, ignorando também as milhões de mortes causadas por Estaline e seus discípulos; dá eco à propaganda do regime chinês, que nega o massacre de Tiananmen. Enfim, a lista é longa e toda ela manchada de sangue. E, assim sendo, se o critério for o respeito pela dignidade humana, tanto o Chega! como o PCP têm de ser atirados para o balde dos intolerantes.

Está claro, portanto, que o que motivou a perseguição do artista Olavo Bilac não foi uma virtuosa defesa da dignidade humana na política – se fosse isso, quem o questionou por actuar num evento do Chega! aplicaria igual tratamento aos que tocam na Festa do Avante!. A motivação é só esta onda de intolerância, que visa “cancelar” quem se afasta da norma, converter o pluralismo em delito de opinião e sufocar o espaço público. Eu, que sou anti-fascista e anti-comunista, anseio que PCP e Chega! desabem eleitoralmente e desapareçam. Mas, enquanto existem, desejo que o Olavo Bilac e todos os outros profissionais (da música ou de outro sector) possam livremente ser contratados para trabalhar nos seus eventos partidários, sem temer represálias. O ponto é simples: se não querem normalizar o Chega!, em vez de adoptarem os seus ideais de intolerância e perseguição, optem pela liberdade e pelo pluralismo.

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