O meu marido e eu fomos recebidos com amabilidade pelo próprio Salvador da Associação que tem o seu nome. Há onze meses sofri uma complicação rara no parto, um abcesso epidural, e também fiquei de cadeira de rodas durante seis meses. Tenho vindo a melhorar lentamente e agora ando com apoio durante curtas distâncias.

Enquanto esperámos uns minutos no gabinete do Salvador, reparámos numa luva vermelha, emoldurada. É a luva com que o alpinista João Garcia subiu ao topo do Monte Evereste, onde perdeu partes dos dedos e do nariz. O João quis dá-la ao Salvador para lhe dizer que as montanhas que ele já escalou não são mais altas do que os obstáculos que as pessoas com deficiência enfrentam todos os dias.

Percebi perfeitamente. Um atleta como o João Garcia, que treina, que cuida do seu corpo, que tem contacto com a natureza, geralmente fá-lo por gosto e quase não consegue viver sem essas atividades. Quem enfrenta a deficiência, a limitação e a dor todos os dias tem que procurar outra motivação para a superar com o sorriso e a resiliência do Salvador.

Antes da minha lesão, já enfrentava algumas dificuldades, por escolha. Tinha cinco filhos pequenos (esta última foi a minha sexta), estava em casa com eles até ao primeiro ano e não tínhamos muitas ajudas domésticas. Já me tinha apercebido que na vida é preciso ter “algum pulso”. É preciso seguir em frente, um dia de cada vez, mas ultrapassando obstáculos que surgem, em direção ao bom, ao belo e ao verdadeiro. Muitas vezes esses obstáculos são internos: tristeza, cansaço, insegurança ou ansiedade.

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Após a minha lesão, senti que o mesmo era verdade, mas multiplicado por mil. Para a frente é que é o caminho. Não pôr a vida em pausa. Continuar a investir nas coisas importantes na vida, no essencial. Encontrámos duas expressões que significam em África “todos empurramos para a frente, juntos”: “harambee” e “nó pincha”. Esta sabedoria atravessa várias culturas e tempos. Claro que há dias mais motivados, menos motivados, mais em cima e mais em baixo. Mas continuar em frente. Levantar-se quando se cai e continuar a lutar.

O que motiva alguém com deficiência a superar? A única coisa que pode motivar qualquer ser humano: as relações interpessoais. O marido, os filhos, a família, os amigos, a comunidade. Quanto mais forte for a estrutura familiar e a rede de amigos, maior a resiliência e capacidade de superação. Existem inúmeros estudos que demonstram que depois de passar a linha de pobreza extrema (ter o suficiente para comer), ter mais dinheiro não faz as pessoas mais felizes. Ter mais dinheiro também não traz vantagem para alguém que enfrenta a doença ou deficiência. Há muitas doenças incuráveis. Outros estudos também demonstram que não é o sucesso, nem o prazer físico que trazem felicidade.

Percebo as limitações do Salvador, que são mais do que as minhas eram. Eu ainda era funcional do umbigo para cima. Mesmo assim, não me conseguia vestir. Nem mudar da cadeira de rodas dum sítio para ao outro. Uma vez, quando já estava um pouco melhor e com mais mobilidade, o meu marido tinha adormecido de noite e estava num sono tão profundo que não acordava para me passar para a cama. Consegui só com a força dos braços atirar-me para a cama e arrastar-me com os braços para cima, como quem escala uma montanha muito alta.

Muitos acidentes ou lesões podem deixar marcas permanentes no corpo e dor crónica. A minha estava pior ontem e o médico disse-me que a dor neuropática tem surtos no verão. Ontem estava com uma dor intolerável, diria 8 numa escala de 10. Fez-me lembrar as dores que tive antes da minha operação para drenar o abcesso, só que estava restrito aos dedos do pé. No hospital, antes da minha operação, perguntavam-me quanto era a minha dor, numa escala de 1 a 10 e eu só gemia: 10!

Em Portugal, foi aprovada a eutanásia há pouco tempo para casos de “sofrimento intolerável”. Já vivi muitos momentos de sofrimento intolerável físico: nos partos e com esta lesão. E alguns de sofrimento intolerável emocional. Será que não é possível ser-se feliz com sofrimento? São as pessoas na minha vida que me fazem feliz. Especialmente o meu marido e filhos, e também outros familiares e amigos. Quando muito, este sofrimento abriu mais o meu leque de amizades, proporcionou mais momentos de partilha entre mim e estas pessoas e fez-me assim mais feliz.

A nossa sociedade, que confunde sucesso e prazer com felicidade, acaba por descartar as vidas que não serão capazes disso ou que as impedirão disso. É incómodo ter um filho ou familiar com deficiência, mas ensina-nos a amar mais e assim a ser mais felizes. É incómodo ter surtos de dor no verão em vez de ir à praia, mas aprendo a depender mais dos outros e eles de mim. E estamos mais interligados assim.

São as crianças, os doentes e as pessoas com deficiência que nos mostram a verdadeira felicidade. Tenho uma amiga que cresceu numa aldeia pequena no centro de Portugal. Ela vive há quinze anos em Lisboa e há quinze anos que ela faz voluntariado aos domingos, de 15 em 15 dias, com crianças com cancro no IPO. Também faz outros tipos de voluntariado. Por exemplo, tem sido incansável em ajudar em nossa casa e com as nossas crianças desde a lesão. Ela diz com humildade e simplicidade: se eu estivesse na aldeia ao fim de semana, estaria a ajudar alguém: os meus pais, tios, irmã, amigas, no que fosse preciso. Estando em Lisboa, tenho mais tempo livre mas queria poder ajudar alguém.

Podemos aliviar o sofrimento uns dos outros e encontrar felicidade aí. São as crianças, os doentes e as pessoas com deficiência que nos mostram que todas as vidas valem a pena ser vividas.