Estive em Buenos Aires pela primeira vez em Dezembro de 2010. Ia a caminho do fim do mundo. A gelada Tierra del Fuego na Patagónia. Era uma parada de quatro dias, que se estenderam por uma semana. Na altura vivia-se o boom das commodities e a Argentina aproveitou os anos de ouro do oil and gas e dos soybeans. Nesse ano, a economia do país cresceu 16% (10% em termos reais) e o ambiente nas calles, nas avenidas, nos restaurantes, nos tangos, nos asados e nos speakeasy de Palermo Soho acompanhava esse crescimento. Foram os loucos anos das commodities.

Nessa década voltei várias vezes à terra de Borges. Talvez umas duas, três vezes por ano. A última foi nos primeiros meses de 2018. Esta periodicidade permitiu-me assistir à lenta e penosa decadência da cidade. Cada vez mais faminta, cada vez mais pobre, cada vez mais vazia de classe média e cada vez mais próxima do nirvana socialista.

Em Abril de 2012, Cristina Fernández de Kirchner (vulgo CFK), no poder desde 2007 e na política desde o início do século, anunciou a expropriação da YPF. A filial argentina da Repsol. Por ordem presidencial, CFK passou a deter 51% das acções da empresa. Na altura não explicou nem como nem quando pretendia pagar pela expropriação. Durante essa mítica conferência de imprensa na Casa Rosada, CFK justificou-se com a necessidade do país voltar a ter “soberanía energética”. Um termo caro e que voltou a estar em voga nos dias que correm.

A relação dos Kirchner com a YPF/Repsol sempre foi atribulada. Nestor Kirchner, ex-Presidente e antecessor da sua víuva, chegou a forçar a entrada de argentinos no capital da petrolífera. Na altura, os felizardos foram a família Eskenazi do Grupo Petersen que “compraram” 25% das acções da Repsol. Repito: “compraram”, porque em bom rigor não pagaram nada pelo capital da YPF. O “acordo” tripartido entre os Eskenazi, os Kirchner e a YPF/Repsol ditou que os primeiros pagariam a sua parte do capital à medida que fossem recebendo dividendos da empresa. Numa palavra, zero risco com retorno garantido. De acordo com Forbes, em 2020, o patriarca da família Eskenazi, Enrique Eskenazi, ocupava o 25º lugar entre os mais ricos da Argentina com uma fortuna avaliada em 500 milhões de USD. Na Argentina, a burguesia é uma inexistência e a oligarquia local confunde-se, não raras vezes, com o poder da Casa Rosada.

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Sendo uma “flawed democracy” – na classificação do The Economist – onde ainda há eleições livres e outras formalidades para inglês ver, a Argentina é um dos maiores casos de sucesso do populismo e das dinastias familiares, e deveria servir de bom exemplo – quase de estudo – a todos aqueles que tenham ambições políticas e pretendam fazer uso do Estado em favor próprio e à medida das suas necessidades de manutenção no poder. O melhor exemplo deste populismo foram Juan Perón e suas várias mulheres. Evita e Isabelita. Perón não foi apenas Presidente do país – primeiro nos anos 40 e depois nos anos 70 do século passado. Foi também fundador de uma nova religião: o peronismo.

Tal como qualquer religião digna desse nome, o peronismo é, provavelmente, um dos fenómenos e conceitos políticos mais difíceis de definir. Uma vezes, significou nacionalizações e expropriações, outras capitalismo “a la Carlos Menem”. Umas significou neutralidade perante Hitler, outras ainda, “alinhamento estratégico” com o Irão de Mahmoud Ahmadinejad. Ainda assim, podemos concordar que o peronismo é sinónimo de populismo e de fanatismo políticos apenas superado por um Boca Juniors / River Plate, no La Bombonera num Domingo de Primavera.

Em menos de um século, a Argentina passou de uma das maiores economias do mundo, e de destino de emigrantes europeus que fugiam das guerras e da fome, a máquina de multiplicação de pobres. Segundo dados do Banco Mundial, 37% dos argentinos vivem na probreza. São mais 30% do que em 2016. A híper-inflação estrutural é rainha e aproxima-se a passos largos da Venezuela. Desde 2018 que a inflação cresce 30% ao ano, e prevê-se que se aproxime dos três dígitos no final de 2022.

Na Argentina, a certeza da inflação só tem paralelo, de facto, com a crença na mano de Dios de Diego Maradona. O Banco Central, vulgo a impressora oficial do regime, é um mero figurante em termos de política monetária e um ilusionista cada vez menos credível. A cada hora que passa os argentinos ficam mais pobres: há um ano, 1 USD valia 180 Pesos Argentinos; no momento em escrevo, vale 298 Pesos Argentinos. As pessoas passaram a comprar tudo a prazos. Desde computadores a preservativos, passando pela manteiga, carne ou carros. Talvez seja díficil de compreender, mas na Argentina sobrevive-se à inflação gastanto mais e mais rápido.

No país ninguém confia nos bancos. Sobretudo desde o corralito do virar do século. Os que podem fogem para Miami, Punta del Este, Barcelona e Madrid, e aqueles que ainda conseguem comprar USD – segundo contam o Jack Nicas e a Ana Lankes numa reportagem para o The New York Times, os argentinos são os maiores detentores de USD fora da América – preferem guardá-los debaixo do colchão ou em fatos de ski devorados por borboto. Em Buenos Aires multiplicam-se as sopas dos pobres decoradas com cartazes com as caras dos Perón, dos Kirchner e de Alberto Fernández (o Presidente em exercício), qual exercício de propaganda norte-coreana. Objectivo? Que os descamisados não se esqueçam de quem lhes deu um lugar na fila.

As dinastias familiares peronistas têm estatuto de santos e espera-se que algum dia sejam beatificados pelo Vaticano, quais repartidores de entremeadas em pão duro. Às tantas ainda conseguem meter uma cunha ao Papa Francisco.

Nas últimas décadas, com um ou outro interregno, a Argentina seguiu o seu alegre caminho do socialismo: impostos impossíveis de pagar, controlo à livre circulação de capitais, planificação e centralização da economia, preços de bens e serviços limitados por tectos legislativos, controlo das importações/exportações. Em resumo, criou uma economia fortemente subsidiada e dependente da rapidez com que o seu Banco Central consegue imprimir Pesos, criando assim uma ilusão de riqueza.

Ora, terminada a luta de classes – descrita nos parágrafos anteriores – o Governo Argentino passou a jogar no tabuleiro das lutas identitárias, em particular o da linguagem inclusiva. Uma tema caro e no topo das preocupações de quem passa fome.

No mês passado, Alberto Fernández declarou que “El ideal va a ser cuando todas y todos sean todes”, advogando que a novilíngua representa a nova e mais progressista fronteira dos direitos humanos, e que deve ser adoptada pelo avançado e exemplar sistema educativo argentino. Contemporâneo certamente, mas não menos elitista. Arrisco a escrever que ninguém na Villa 31 percebeu a mensagem, e acredito que esteja a tentar alargar a sua base eleitoral e focar-se nos ricos que ainda vivem em Belgrano e San Isidro.

Neste debate, Alberto Fernández é acompanhado pela Aministia Internacional. Contudo, como em todas as lutas, há sempre um contra-revolucionário que interrompe o progresso. No caso argentino, trata-se de Horacio Rodríguez Larreta, Presidente do Governo da Cidade Autónoma de Buenos Aires, que declarou que “ni todes, ni chiques” e que “la lengua española brinda muchas opciones para ser inclusivo sin necesidad de tergiversar la lengua, ni de agregar complejidad a la comprensión y fluidez lectora”. Segundo Larreta, a medida contra-revolucionária e anti-novilíngua justifica-se pelas posições oficiais da Academia Argentina de Letras e da Real Academia Española. Um aborrecimento e um resquício do maldito colonialismo espanhol.

A luta, tal como a fome, continuarão, e o peronismo não se sente ameaçado. Como um dia escreveu Borges, “Las tiranías fomentan la estupidez”. Tinha razão. E a sua Argentina é talvez um dos maiores e mais longos exemplos disso.