“Isto faz-me lembrar uma piada que vi circular na Internet. Dizia que quem fica contente com as vitórias da direita é porque é rico ou então porque é estúpido. Bom, ricos sabemos que não somos.”
Carmo Afonso, in Público, 26.02.24, p. 40
Os cães que ajudam a apascentar o rebanho cercam as reses e lançam correrias erráticas enquanto despejam latidos. Os cães-pastores são incansáveis e previnem o tresmalhar das reses. Sabem, os cães, que recolhido o rebanho aos estábulos recebem a recompensa. Então podem saciar a fome e a sede com as vitualhas que o pastor preparou. Depois, é dormir o sono dos justos. Não fosse pela sua diligência, o pastor e a família tinham perdido muitas cabeças de gado. Afinal, é magro o pecúlio avençado ao entardecer. Não é paga proporcional. Os abastados são, sempre, pistoleiros da ingratidão.
Podia ser apenas uma metáfora. Mas não é.
A direita cabalística despeja o anátema da arrogância quando certas personagens de esquerda e de esquerda radical ostentam pose moralista. É um trunfo virado do avesso. Depressa os visados contra-atacam com o queixume de que são vítimas da intolerância “da direita”. Depois disso, é um diálogo de surdos. Exacerbado em época de campanha eleitoral, quando a retórica cheia de ardis e o tiro ao alvo ao adversário sobem ao palco e cimentam a mediocridade.
Não quero alinhar pela bitola dos mercenários da direita belicosa que se abespinham com as provocações dos que militam nas esquerdas. Estes só têm de dar o mote. O resto, na pulsão desastrada que lhe é típica, fica por conta desta direita ora antiquada, ora distraidamente apta a cair nas armadilhas espalhadas pelas esquerdas. O fogo cruzado de acusações prova que a razão não estaciona em nenhum dos lados da trincheira. Os de direita acusam os de esquerda de pesporrência moral e de serem intolerantes. Os de esquerda fazem suas estas palavras e devolvem a acusação. Os acusadores trocam de lugar com os acusados, dependendo do lugar da trincheira em que se situem.
Dizia há dois parágrafos: não quero tomar partido da direita enfunada, nem quero dar a impressão de que estou a distribuir trunfos pelas esquerdas de diferente cepa. Mas há alturas em que o sangue, por ser ateado de fora, fica em ebulição. O silêncio não pode perdurar, sob pena de outra, e pior, impressão ficar a latejar na carótida: o nada dizer sobre aleivosias gratuitamente bolçadas pode traduzir cumplicidade com os que as bolçam. (Podia considerar a hipótese que os irrelevantes não merecem atenção, aqui deixada de lado.)
Carmo Afonso, a cronista trissemanal que ocupa a última página do Público, passa a impressão de seduzir com mansas falas enquanto assesta o florete nas costas da pessoa que amesendou com ela. (Corro o risco de cometer uma tremenda injustiça, pois não conheço a Carmo em pessoa; só do que escreve). Digo, curto e grosso: ainda bem que sabemos o que escreve, pois ser vítima da dissimulação fica ao critério dos néscios ou dos distraídos. O silêncio, ou a indiferença, só se for para não saldar a perigosa intolerância de quem pespega lições de tolerância.
Por falha minha, não fiz o inventário das conclusões assombrosas, baseadas em preconceitos e em pressupostos que são profecias autorrealizáveis, que industriam um raciocínio moldado ao jeito do lugar ideológico em que a Carmo se encontra. Anteontem, a certa altura, fez-nos um desenho para percebermos: “a direita” tem a austeridade ajuramentada, porque “a direita” só sabe estar do lado dos endinheirados e das empresas com lucros pornográficos. (Faltou explicar que a austeridade, no estado em que a economia se encontra, é um contrassenso.) E assim fomos testemunhas de uma notável carta extraída da cartola em que labora o raciocínio prodigiosamente enviesado de Carmo Afonso.
O pior estava reservado para o final do sermão. É a citação que dá o mote a este texto. Carmo Afonso não consegue perceber como 57% dos que participaram na última sondagem admitem votar em partidos de direita. Carmo Afonso podia abdicar da advocacia e prestar-se ao papel de grande educadora dos cidadãos. Para ensinar “Como deixar de ser estúpido I e II” e “Teoria geral da perniciosidade da direita”. Pelo caminho, preparava um projeto de lei a proibir “a direita” – a direita toda – de concorrer a eleições. Os estúpidos, enfim, deixariam de ter em quem votar, o que talvez pudesse contribuir para a sua conversão em gente justa, avisada e penhoradamente racional, depois de começarem a votar na esquerda (comme il faut).
A diferença entre a Carmo Afonso e alguém de direita moderada e moderna é que, ao contrário da Carmo, aqueles de quem discordamos não são excluídos da praça pública. Nem são ofendidos com a insinuação, mal disfarçada, de que não sendo ricos só podem ser beócios. Todos são bem-vindos a bordo. Para podermos discordar uns dos outros. A menos que os cinquenta anos da revolução de 25 de abril sejam para restaurar o pensamento único, a intolerância e a exclusão dos que não pensam como deve ser.
Carmo Afonso: a democracia deve ser como a arca de Noé. Ou como a discoteca que está, generosamente, de bar aberto.