“(…) é muito difícil governar quando falta a crise como instrumento de governo e de poder.” António Guerreiro, Ipsilon, 29.03.24, p. 30.

1. Governar é um paradoxo depois de (aparentemente) esconjurada uma crise. Estamos habituados à eternização da crise e parece que a sucessão de crises é conveniente aos governos: as condições difíceis servem de pretexto para decisões impopulares e habilitam uma narrativa para o insucesso das políticas escolhidas.

2. O governo cessante anunciou um excedente orçamental sem precedentes (1,2% do PIB). As vacas magras são coisa do passado. Eis o subtexto do excedente orçamental: os tempos vindouros serão fáceis, pois o novo governo herda condições ímpares. De acordo com o estudo dos ciclos eleitorais, nos anos iniciais da legislatura o governo toma decisões impopulares, ganhando margem de manobra para decisões que seduzem os cidadãos em véspera de eleições. O que sobra para o governo seguinte (que até pode ser da mesma orientação político-partidária) são tempos difíceis, pois tem de lidar com os excessos de eleitoralismo resultantes das medidas generosas que cativaram o eleitorado.

3. A mensagem ficou gravada numa moldura para ninguém esquecer: o novo governo começará a governar num contexto de vacas gordas. É a herança do governo anterior. Não vai ser uma gestão típica do ciclo eleitoral. O que pode causar dificuldades para o novo governo, o que não deixa de ser paradoxal. Para António Guerreiro, estas não são circunstâncias atípicas, pois “(…) a circunstância excepcional que estamos a viver em Portugal faz-nos perceber que a crise é que se tornou a norma, e quando ela se ausenta entramos no estado de excepção”. Esta ideia merece algumas observações.

4. Considerar um excedente orçamental como antítese da crise é uma simplificação abusiva. É fazer equivaler a crise a uma dimensão puramente económica, encaixando na semântica neoliberal (que Guerreiro denuncia). Ora, o desenvolvimento de um país extravasa os dados estatísticos que operam no domínio da Economia. E a situação económica de um país não tem as Finanças Públicas como barómetro único. O desenvolvimento transcende dados mensuráveis, dificultando comparações entre países. Não é por acaso que o PIB per capita serve para situar um país em termos comparativos, ainda que o critério seja cada vez mais contestado até por economistas ortodoxos. Para se atestar se um país está em crise, os dados económicos oferecem uma visão parcial. Pode haver crise havendo excedente orçamental. Politicamente falando, o pressentimento da ingovernabilidade e a profecia de que até ao fim do ano podem ser convocadas eleições legislativas são uma prova imensurável da crise de regime.

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5. É preciso apurar a genealogia do excedente orçamental. Não é um exclusivo de Portugal, sendo despropositada a genuflexão coletiva ao cessante ministro da Finanças – é a mania de endossar as culpas do que é mau para o nível internacional e requisitar aplausos quando os resultados são favoráveis e isso se fica a dever ao governo bondoso. Os bons resultados das contas públicas radicam na elevada inflação que maximizou as receitas do Estado. Um excedente orçamental alimentado pela espiral inflacionista é sintomático da falta de sensibilidade social do governo. O desempenho exemplar esconde a opção (não seguida pelo governo) de distribuição dos proveitos da inflação para mitigar os seus efeitos adversos, sentidos em maior medida pelos cidadãos mais desfavorecidos. Parece que o governo cessante não honrou a advertência em tempos feita pelo presidente Jorge Sampaio: “há mais vida para além do orçamento” (com a adaptação aos tempos correntes: há mais vida para além do excedente).

6. A rutura da legislatura foi causada por acontecimentos inesperados. A gestão das Finanças Públicas ultrapassa o muito curto prazo destes acontecimentos excecionais. Mas não se pode deixar de interrogar se a gestão das Finanças Públicas, com a indisponibilidade de redistribuir os ganhos da inflação pelos contribuintes, deixa no ar a hipótese de o governo cessante estar convencido que ia continuar em funções depois das eleições. Ou então, já se pressente a efemeridade da legislatura inaugurada na semana passada, adivinhando-se a marcação de eleições legislativas no curto prazo. Nesta hipótese, pode o anúncio do excedente orçamental será entendido como uma medida de campanha eleitoral antes do tempo?

7. Voltando ao paradoxo da governação, quem segue os fenómenos políticos e a comunicação associada terá a perceção de que atravessamos diferentes crises e não chegamos a sair de um estado permanente de crise. A isto chama-se “policrise” (ou um palimpsesto de crises). O mito de Sísifo confere a metáfora da governação: quando o governo derrota uma crise, repete-se a via sacra por conta de outra crise que se lhe segue – e assim sucessivamente.

8. No estertor do governo cessante, o ministro das Finanças apareceu em público a anunciar que a crise acabou, alardeando uma sensação de euforia e de pré-depressão, vaidoso e sem conseguir esconder uma lágrima pela interrupção de tão virtuosa governação. Mas os governos estão habituados a lidar com crises. Não parecem destinados para governar quando as vacas já engordaram. Esse não é o seu habitat natural. Nem deles, nem dos cidadãos habituados a conviver com a crise imorredoira que apresenta governantes com um semblante carregado, sempre com o dilema de escolherem a solução menos má que permita navegar por estima até à próxima crise.

9. Se Guerreiro estiver certo, a declaração oficial do fim da crise decreta a orfandade etimológica da ação governativa. Só sabemos o que fazer com as crises, não com o seu contrário. Saberá o governo governar entre tantas vacas gordas, ou vai ser vítima de um deslumbramento próprio de quem não sabe aproveitar a fortuna que lhe calhou em sorte? Talvez este diagnóstico seja o reflexo de uma conceção antropologicamente pessimista: estamos adestrados para saltar de adversidade em adversidade, como espécie adaptativa, mas não sabemos tirar partido de um momento favorável.

10. É um sismógrafo virado do avesso: as agulhas tremem quando a crise foi (declarada) extinta.