(Para que este texto não seja treslido à medida das conveniências, começo pelo registo de interesses: a popularidade da extrema-direita causa-me perplexidade e preocupação. Estes radicais são uma tumefação da democracia – mas não são os únicos. Todavia, não pode ser vedada a sua participação em eleições se e enquanto não manifestarem a intenção de extinguir a democracia. No passado recente, algumas destas personagens tomaram conta do poder após terem ganho eleições. Por mais entorses que tenham causado à democracia, não lhe puseram termo. Por mais que causem náusea – e causam-me, nestes tempos de alvoroço, um pouco mais do que a extrema-esquerda – ainda merecem participar em eleições.)
Brecht dizia, com cinismo, que o povo devia ser dissolvido quando não vota “como deve ser”. Eis o drama existencial da democracia: de acordo com alguns iluminados que aspiram a pastorear o bom povo que precisa de orientação, a democracia é o melhor regime desde que o povo não eleja os que não devem ser eleitos. Há sempre uns predestinados que, autorrespondendo ao sofisma “quem decide quem decide?” (eles, pois então), instruem o bom povo sobre os candidatos ou os partidos recomendáveis e os que devem ser impedidos de ganhar.
A triagem é um exercício de denegação da democracia. Os iluminados atropelam o jogo da democracia ao recomendarem aos eleitores os eleitos recomendáveis. Este exercício esbarra noutro que é intrínseco à democracia: o direito de escolher entre listas ou candidatos que se apresentam a eleições, sem a tutoria paternalista que infantiliza os eleitores. Se um acaso levasse os “certificadores” de candidatos à titularidade do poder, conseguiam resistir à tentação de proscrever certos candidatos e partidos que, de acordo com a sua visionária lente, não respeitassem os mínimos de aceitabilidade democrática? O que se diria da linhagem democrática dos que, por sua autorrecreação, impedissem alguns de concorrer a eleições?
Para imenso desgosto das patrulhas do bem votar, o Estado de direito exerce superioridade sobre o voluntarismo dos seus alferes e atira para o palco uma importante mnemónica: a vontade intransigente de quem inspira as massas não se torna letra de lei. Por muito que aspirem a ser condutores do povo e acreditem que ditam as leis (como se um ordenamento jurídico resultante da sua arbitrariedade suplantasse as leis existentes), o Estado de direito está aí para impedir essa entorse.
Para imenso pesar destes letrados, o sistema político tem regras que aceitam aqueles que os condutores de almas já condenaram ao desterro político. Para sua (e minha) grande mágoa – e para o pior que se possa imaginar –, os abencerragens de um passado deplorável têm cativado cada vez mais votos. Alguns, homessa!, chegam a ganhar eleições e não extinguiram a democracia. Outros, dantes ausentes da paisagem política, têm agora um contingente numeroso de deputados. Os donos da verdade democrática assentam nos pergaminhos autocráticos destes populistas, mas esquecem a temerosa linhagem de outros populistas que gravitam na assimetria dos proscritos.
O pior é quando os juízes da moralidade impante animam as hostes que devem sair à rua em protesto contra eleições ganhas pelos que não deviam ter ganho – os “fascistas”, no rótulo tão fácil, tão banalizado e tão esvaziado de significado, que não seja o vexame dos que ousam ser seus opositores. Ou quando peroram sobre a qualidade do voto dos que escolhem estas personagens de má rês e atropelam flagrantemente o princípio do voto individual e de como todo o voto, até o que mais lamentamos (de preferência no nosso íntimo), conta por igual. Os juízes do politicamente correto escorregam para o anátema do que dizem defender em público, a igualdade de todos e a incontestabilidade do voto popular. O que dizer destes lídimos representantes “da verdade” (como se fosse possível objetivar a verdade) quando se investem no papel de guardiães da democracia e convocam manifestações de rua que desprezam os resultados de uma eleição? O que dizer dos pergaminhos destes “democratas” quando não respeitam um esteio da democracia?
Os autoinvestidos embaixadores da moralidade política, elevados a tutores da democracia, exibem um traumatismo democrático: não sabem aceitar o resultado de eleições quando os que vencem saem da sua órbita de aceitabilidade. Pior do que exibirem os seus traumas democráticos, é o traumatismo que, sem darem conta (a minha ingenuidade prefere acreditar nesta hipótese benigna), causam na democracia.
Em matéria de apego à democracia, não são muito diferentes dos “fascistas” que elegem como bandeira de combate. Aliás, há lugares e circunstâncias em que já andam de braço dado, como ficou provado com a moção de censura que depôs o governo francês liderado por Michel Barnier, aprovada por uma coligação talvez não tão contranatura entre a extrema-direita e as esquerdas, radicais e outras não.
(O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico)