Como qualquer outra pessoa, tenho certas “pertenças”. A minha a família, o grupo das caminhadas, o prédio onde moro, a terra onde resido, Portugal, a Civilização de que faço parte. E em todas elas há pessoas, grupos, colectivos e países de que não gosto. Que têm feitios, defeitos, valores, atitudes e características que não aprecio, de que discordo ou até detesto.
Mas são a minha família, a minha cidade, o meu país, a minha civilização e como tal enformam a minha identidade e pertença. Faço parte delas! Por isso tendo a estar do lado deles, sempre que o confronto, a competição, o diferendo ou o conflito com o “outro”, atingem certos patamares. Não sendo, por exemplo, adepto do FCP, sou “por ele” quando joga com um clube de outro país, sinto-o como um dos “nossos”.
E vejo com estranheza e rejeição a atitude sistemática de ser “contra” aquilo de que se faz parte, é como simpatizar com um cancro que ataca o próprio corpo que habita. Não se trata de ser apologético para com tudo o que se passa no interior do grupo, ou de não ver os seus defeitos, mas sim da permanente pulsão para a hostilidade e, no limite, quando estão em jogo coisas realmente importantes, a traição.
Apesar de Roma não pagar a traidores (expressão que resulta de um episódio em que subordinados de Viriato, mataram o caudilho lusitano, às ordens de Roma e foram posteriormente liquidados por esta), o facto é que se verifica empíricamente que uma certa percentagem de membros de um qualquer grupo humano tende a fazer isso mesmo em todas as latitudes e eras.
O fenómeno é pois comum, embora agravado na nossa Civilização, provavelmente por suicidários modismos culturais. De onde vem isto? O que leva por exemplo os wokes a destruírem estátuas, a denegrirem a sua própria identidade e pertença, a sua História e os seus valores? Que os motiva a atacarem, com indesmentível hostilidade, os fundamentos da sociedade a que pertencem?
O que leva a extrema-esquerda a evitar a palavra “Portugal” e a tentar constantemente julgar a História de Portugal à luz de alguns valores actuais, como se aqueles nossos antepassados que nos legaram o presente, fossem criminosos por não terem frequentado os acampamentos de doutrinação do Bloco e terem sido meras pessoas do seu tempo.
Que leva tanta gente, de todos os quadrantes ideológicos, desde os nazis à extrema-esquerda, passando pelo Papa Bergoglio, a Greta, o Engenheiro Guterres, a Sra Mortágua e dirigentes políticos irlandeses, noruegueses e espanhóis, ao ódio pelo povo judaico que é, queira-se ou não, o berço da civilização de que fazemos parte e que connosco partilha um extensivo legado de valores civilizacionais?
No casa da guerra que a Rússia desencadeou contra a Ucrânia, que leva tanta gente, nas nossas sociedades, incluindo uma plétora de comentadores televisivos e certos generais, a identificar-se com o agressor, a justificá-lo, a relativizar, a verbalizar o constante whataboutismo, a denegrir e atacar o seu próprio grupo, país, civilização, alianças e valores?
De onde vem este impressionante nojo, vergonha e antipatia para com a própria pertença cultural e civilizacional, como se fossem coisas externas ao individuo em causa e não constituídas também por ele? Quem é esta gente que parece sentir desprezo pela sua História, pelos valores que herdaram, pelos seus ascendentes e pelos seus conterrâneos que os defendem ou aceitam?
De onde vem aquela atitude, absurda mas comum, de pessoas que classificam de “parasita” a espécie humana, como se elas mesmas não fizessem parte dela? Não entenderão que estão a chamar parasitas a elas mesmas e aos seus familiares?
Será a culpa? A compulsão para expiar algum pecado original? O ódio a si mesmo sublimado, por cobardia, no ódio ao grupo de que se faz parte? Talvez seja um pouco de tudo isso, mas uma das coisas que imediatamente salta à vista é que se trata quase sempre de pessoas de certas elites, ou que se acham como tal, pessoas que tendem, não se sabe bem porquê, a considerar-se “melhores”, mais esclarecidas, mais iluminadas, mais sábias.
Em 2004 o filósofo inglês Roger Scruton chamou “oikofobia” à desconcertante predisposição para tomar partido por “eles” contra “nós”, denegrindo as “nossas” e “nossos” costumes, instituições, cultura, costumes, valores, História, e por aí adiante. Notou ainda que o surgimento desta fobia acompanha tipicamente o declínio sendo historicamente identificável em multiplos povos, culturas e civilizações.
Na primeira fase, um povo cercado, ameaçado, incivilizado ou inculto, desperta e cresce, impondo-se paulatinamente aos povos vizinhos. É o tempo em que a união entre os indivíduos é essencial para a sobrevivência, porque a segurança depende da cooperação entre eles. Nesse contexto o prestígio individual (o hegeliano “reconhecimento”) alcança-se na luta contra o “outro”. A maioria dos indivíduos coopera com os outros, na luta pelo sucesso colectivo, face a uma ameaça desafiante.
Os heróis celebrados pela História, lendas e mitos, são os indivíduos que elevam o nível do colectivo a que pertencem. A certo ponto, se o grupo tem sucesso, atinge um auge, real ou percepcionado, e surge então uma classe de pessoas com riqueza, poder e tempo para o lazer.
Nesse estágio a cooperação deixa de ser predominante, e aqueles que prosseguem o prestígio, nos patamares superiores da pirâmide de Maslow, procuram a afirmação, já não na luta contra o “outro” externo, mas contra o “outro” do seu próprio grupo. Esse mecanismo explicaria, por exemplo, a corriqueira inveja pelo novo carro do vizinho, e a ostentação dos pequenos sinais.
Seria também isto que levaria estas “elites” a enveredarem pela crítica da sua própria pertença. É uma forma de se destacarem da “plebe”, da multidão, do povo concreto, e afirmarem assim a sua suposta superioridade e prestígio. É como aquelas pessoas bem sucedidas que têm vergonha das suas origens humildes, como o filho letrado que esconde a mãe analfabeta.
Progressivamente este tipo de pessoas vai encarando os seus próprios concidadãos e valores com certo desprezo, considera-os atrasados, mais detestáveis que os de outras civilizações ou culturas que, por comparação passam a ser respeitáveis, admiráveis, incriticáveis e até sagradas. Em suma, o sucesso de um grupo e a ausência de ameaças existenciais é, paradoxalmente, o requisito principal, para o despontar da hostilidade ou fastio de certos membros para com o colectivo de que faz parte.
Se repararmos nas redes sociais ou nas “bolhas” académicas, uma das pretensões mais frequentemente verbalizada por estas pessoas, é a ideia de que só elas pensam pela sua cabeça, só elas estão informadas, só elas são capazes de ver todas as vertentes do problema, em contraste com os outros do seu grupo, aquela massa ignara, estúpida, carneiral, manipulada pela televisão e por forças ocultas, secretas e poderosas, num delírio que entretece todas as teorias da conspiração e todas as paranoias.
Estes indivíduos consideram-se a si mesmos a elite que vê mais além, que percebe o que a massa não percebe, que conhece a Verdade por detrás das aparências, e é nesta competição “doméstica” que se descobre a desprezar a cultura dos que acha “atrasados”, e automaticamente se vê a si mesma como superior a todos os outros. O aumento da hostilidade para com os “deploráveis” tem sido especialmente notório nos Estados Unidos, o país que ainda é o mais poderoso do mundo mas se foi debilitando por afirmações de miríades de diferenças identitárias que corroeram os seus pilares sociais, culturais, políticos e militares,
Ora um grupo humano tão enquistado em lutas internas, em que uma grande parte da população odeia a sua pertença, descerá até ao ponto em que volte a ter necessidade de cooperar para enfrentar a ameaça existencial de um inimigo externo, ou se dê a emergência de líderes que não sofram de oikofobia e queiram activamente confrontar o problema, como parece estar a acontecer neste momento do outro lado do Atlântico, para grande consternação de todos aqueles que têm ganho a vida a fustigar a sua própria pertença.
Nas questões da Ucrânia e de Israel, este mecanismo está também amplamente exposto e são inúmeras as pessoas que, agindo como se odiassem a sua identidade e pertença, tomam partido pelo “outro” movidos certamente pela ignorância, a nível cognitivo, mas sobretudo pela necessidade psicológica de alcançarem um senso superficial da própria singularidade.
A oikofobia é hoje um fenómeno marcante e perigoso na Civilização Ocidental. E paradoxal, porque foi esta Civilização que decantou o melhor período da História do Humanidade, no que toca a bem-estar, saúde, riqueza, abundância, paz, respeito, liberdade e prosperidade. Algo que devia gerar orgulho mas que, em alguns indivíduos, gera apenas hostilidade e rejeição.
Face aos oikofobicos que proliferam hoje no espaço mediático e público, as únicas consolações são, por um lado constatar o processo de renovação que está a ganhar momentum a partir dos EUA e, por outro, perceber que, contrariamente à grande opinião que têm de si mesmos, não são uma “elite iluminada” ou a última bolacha do pacote, mas apenas um subproduto perverso do sucesso das sociedades que criticam e de que fazem parte, pessoas medíocres, com complexos de inferioridade, que sublimam a dissonância construindo um mito de imaginária superioridade face aos restantes membros do seu grupo, a plebe, os “carneiros” e os “deploráveis”, naquilo que Freud designou por “narcisismo das pequenas diferenças”.