O autor do cartaz “suíno” do dr. Costa, Pedro Brito, viu cancelada a sua participação numa exposição colectiva, que integrava com outro cartaz, crítico do ministro da Educação. A exposição envolve a Universidade Nova de Lisboa, a Universidade do Porto e uma coisa chamada espaço comité (com minúsculas, porque é moderno). Após o lançamento de responsabilidades dali para acolá, apurou-se que a decisão de excluir o trabalho de Pedro Brito coube ao “comité”, o qual, diz o respectivo site, “dispõe de diversas salas para eventos, conferências, recepções e exposições com potencialidade de serem usadas em conciliação com a sua própria programação”. É capaz de ser uma espécie de galeria.

O “evento” em causa, ou a “exposição”, chama-se, de modo involuntariamente adequado, “Inclinação Para o Proibido”. Segundo o “comité”, a “Inclinação Para o Proibido” saiu de “um repto lançado pelo colóquio COMbART (?) sobre arte e activismo, questionando a produção, circulação e visibilidade de práticas criativas que veiculam valores decorrentes de lutas dos movimentos sociais actuais. Inversamente, desafia-se as práticas artísticas a resistir a uma potencial reapropriação das mesmas lutas dentro da economia dominante: a anonimidade do artista e de quem transporta e expõe a obra serve esse princípio. A mostra conjuga 30 manifestações textuais com imagens criando processos discursivos que tendem para uma potencial actualização das linguagens gráficas urbanas.”

Peço desculpa pelo tamanho da citação, proporcional à beleza da linguagem. Traduzido para português, o texto pretende informar que a “mostra” mostrará, entre 3 e 21 de Julho, 30 desenhos ou pinturas de protesto. O que o texto não informa é que o “comité” possui um entendimento restrito da palavra “protesto”, e que “as 30 manifestações textuais com imagens” ou eram 31 ou foram reduzidas a 29. Calculo que haverá achincalhos ferozes e corajosos da “extrema-direita”, do “negacionismo climático”, do “colonialismo”, da “família tradicional” e da “transfobia”. Beliscar governantes é que não. Sobretudo se os governantes são os nossos. Sobretudo se os nossos forem do PS. Sobretudo se o PS controla as instituições que patrocinam o “comité”: é difícil resistir à reapropriação das lutas dentro da economia dominante, não é?

Não quero ser injusto. O “comité” está longe de estar sozinho nas tendências censórias e nas vénias aos senhores que mandam. Há um par de semanas, quando os publicitários do Partido disseram ao dr. Costa para fingir que o famoso cartaz era “racista”, meio mundo agarrou a deixa e desatou a exibir o apreço que dedica à liberdade de expressão. No meio da turba inquisitória, nem faltaram colegas de Pedro Brito, desenhadores que se supõem irreverentes embora reverenciem os poderosos, estes poderosos, sem pingo de vergonha. O problema dos Torquemadas não era com o nariz de porquinho, os lápis nos olhos, o racismo imaginário ou o “mau gosto” que nunca se sugeriu no tempo em que o primeiro-ministro anterior era retratado como Hitler e se levavam coelhos esfolados para pândegas. Os Torquemadas limitaram-se a responder ao apelo do Chefe. E é essa subserviência cega, essa propensão para a espinha curva que não começou ontem e não se espera que termine amanhã, que assusta.

No fundo, presumir que os censores e os candidatos a censores agem unicamente por interesses económicos ou receios profissionais é um consolo e, possivelmente, um engano. A perspectiva mais terrível e mais provável é que a tal inclinação para proibir esteja inscrita na natureza humana, e com maior relevo se os humanos são portugueses. Claro que a ideologia pesa, e que um governo de esquerda tende a esperar uma obediência geral impensável sob os governos daquilo que, em Portugal, passa por ser “direita”. Porém, é principalmente o cheiro a opressão que seduz as massas e as converte à jovial submissão em curso. Não é preciso ter lido Maquiavel para se ser figurante d’“O Príncipe”: até certo ponto, uma liderança intolerante e abusiva inspira a fidelidade dos simples, como a liderança “aberta” e “débil” inspira revoltas súbitas e valentes espontâneos. A vocação para o autoritarismo e a tradição de sabujice parece um cenário construído à medida do dr. Costa e de parte substancial dos meus compatriotas. E é.

Por isso chegamos aqui, ao lugar em que um cidadão é perseguido à luz do dia por conta de um banalíssimo exercício de sátira e não acontece nada. Há 30 anos, a rejeição “oficial” de um livrinho de Saramago deixou o país às portas de uma apoplexia nervosa, com chiliques de indignação a brotarem de todos os lados. E antes que me acusem de comparar Saramago com Pedro Brito, esclareço: não comparo. Desde logo, dos telejornais à “oposição”, Pedro Brito não tem ninguém a defendê-lo e quase ninguém a noticiá-lo, enquanto Saramago acabou elevado a mártir a pretexto de um prémio obscuro e uma medida estúpida. Além disso, Saramago fora ele próprio um conhecido entusiasta da censura, o que no mínimo lhe dava familiaridade com o ofício e lhe retirava legitimidade para se queixar do dito. Ignoro se alguma vez Pedro Brito teve uma carreira a controlar a informação e a sanear dissidentes a expensas de um poder arbitrário. Mas duvido: se tivesse tido, o dr. Costa gostaria dele, e ele adoraria o dr. Costa.

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