O tempo mediático já devorou o tema que levou as redacções a espreitar, mesmo que pelo buraco da fechadura, para o que têm todos os dias à porta. As eleições norte-americanas ocuparão boa parte da agenda noticiosa da semana, depois de praticamente se ter passado como cão por vinha vindimada pelo que de politicamente relevante se passa aqui ao lado, em Espanha, onde o monóculo jornalístico português parece ainda só ter reparado nas imagens espectaculares da assustadora desgraça que por lá sucedeu, ignorando a amoralidade do sanchismo e o caos político e institucional que está a cavar à nossa porta. Oportunidades não faltarão a boa parte da jornalada e do comentariado lusitanos para voltarem a acenar a sua superioridade moral, num desfiar praticamente diário e cuidadosamente seleccionado de histórias, casos ou novelas que ganham sumiço com a mesma velocidade com que nos entram pelos televisores. Mas talvez valha a pena não deixar desaparecer os subúrbios lisboetas do radar. Para mim, pelo menos, é difícil ignorá-los por condição e percurso.
Acabei de ler, no passado domingo, A Década Prodigiosa – Crescer em Portugal nos anos 80, de Pedro Boucherie Mendes, um merecido calhamaço que desfila pela década em que nasci, num esforço hercúleo de grandes e pequenas memórias, produzido num país que não é famoso por ter memória alguma, e que acaba por desenhar um retrato do país que fomos e talvez continuemos a ser. Posto no mundo a meio da década, não deixei de me admirar com o facto de boa parte daquelas memórias quotidianas – não tanto as efemérides, por razões óbvias – me serem, na verdade, mais familiares do deviam. Talvez porque em minha casa, onde o telefone só surgiu quase a meio dos anos 90, ou onde nunca houve televisão por cabo, internet ou microondas, se viveu durante muitos anos como se a primeira metade dos anos 80, de certa forma, persistisse na mentalidade, lado a lado com a segunda metade da década, e com um mundo que avançava, e eu com ele, no que seria mais essencial: a ascensão social e económica.
Nos últimos anos, alguns livros fizeram com que regressasse mentalmente a um período de vinte e quatro anos da minha vida, devendo aqui um agradecimento ao que têm produzido autores como Bruno Vieira Amaral, com As Primeiras Coisas, ou Henrique Raposo, com As Três Mortes de Lucas Andrade. A Década Prodigiosa surgiu, porém, espantosamente no meio deste rebuliço de tiros, mortes, coisas queimadas, manifestações e muitos comentários televisivos ou impressos sobre um tema a que só não volto mais vezes, neste ou noutros espaços, porque sei que as nossas memórias pessoais são gelo fino sobre o qual se caminha quando se fala ou escreve sobre assuntos públicos.
Em primeiro lugar, porque não tenho, nem pretendo ter, o monopólio do olhar suburbano. Em segundo lugar, porque ouvi e li uma maioria de vozes sensatas e equilibradas falar sobre o assunto, e não estou certo de que possa aqui introduzir uma inovadora visão sobre algo que, na verdade, só dividiu radicais de ambos os lados, e respectivos idiotas úteis. Mas de tudo aquilo que ouvi durante aqueles dias em que as televisões faziam directos à espera de tumultos, houve dois momentos particularmente interessantes e que, também eles, me fizeram voltar a outro tempo. Um deles foi Isaltino Morais que, sabendo do que fala, tentou pôr os jornalistas no lugar da respectiva ignorância, quando acusou as televisões de estarem a criar um alarme mediático que só atirava mais lenha para uma fogueira que aquelas, na verdade, desconhecem. Outro foi um velho, julgo que residente na Cova da Moura, que, perante a pergunta sincera de um repórter sobre se se esperariam mais tiros naquela noite, respondeu placidamente que ali havia tiros todas as noites. Era só nisso em que eu pensava desde que comecei a ver as imagens dos incêndios, depois do homicídio de Odair Moniz por um agente da polícia.
Lembrei-me de uma noite de Natal em que, já adulto, chegado a casa depois de uma Consoada passada em casa de uns primos, em Lisboa, se incendiaram uns caixotes do lixo atrás de minha casa, e de como isso não despertava em mim qualquer alarme, mas antes um cansaço insuportável de viver numa espécie de caos e desordem permanentemente ignorados. O jardim por onde fugiram os ateadores do fogo urbano-natalício era, até aos meus 6 ou 7 anos, um acampamento de ciganos, um conjunto de barracas impenetráveis, que convivia de forma tensa com as nossas vidas de classe média pós-rural, e que acabou por ser desmantelado, praticamente de um dia para o outro, depois de uma tarde inteira de tiros de caçadeira entre os residentes do acampamento e a polícia, que me deixou enfiado no quarto a ouvir os zumbidos das balas, e a ouvir o meu pai à janela da sala, enquanto fumava cigarros, indiferente a eventuais balas perdidas, a sugerir ângulos de penetração aos polícias que rastejavam entre os automóveis.
Morávamos praticamente a meio caminho entre os bairros da Jamaica (que, na realidade, se chama «Vale de Chícharos») e da Quinta da Princesa, conhecíamos de cor o rosto de uns e outros, muitas vezes inimigos entre si, que nos atrapalhavam a vida, na rua ou na escola, entre pequenas agressões, furtos, facas de ponta e mola ou pistolas que, por alguma razão, chegavam mesmo a frequentar os pátios escolares impunemente e com conhecimento de quase todos. Durante muitos anos não tive o hábito de andar na rua com dinheiro; no máximo, escondia-o nas meias, dividindo as moedas pelos vários bolsos e sapatos, para que o tilintar não me denunciasse. Temo mesmo ter desenvolvido uma certa técnica de visão de 360º, um espreitar permanente sobre o ombro que, uma certa noite, já adulto, levou alguém a perguntar-me, no Bairro Alto se eu «era bófia». Tive de chegar à universidade para compreender que, passando o rio, pouco me distinguia socialmente daqueles que, na outra banda, pareciam viver a uma galáxia social de mim. Do lado de lá do rio, talvez fosse demasiado betinho. Do lado de cá, tornava-me demasiado chunga.
Em tempos, o presidente Jorge Sampaio visitou uma escola primária na Quinta da Princesa e chamou-lhe a «escola colorida». A notícia abriu telejornais, fez manchetes, Portugal era cosmopolita, condenava o racismo, e, porém, naquele «concelho de Abril», comandado desde sempre pelo Partido Comunista, persistiam os bairros de lata, a guetização das comunidades africanas, e só se era notícia quando se praticavam crimes particularmente brutais ou quando alguma alta figura nos visitava para nos enaltecer o progresso social, ignorando o quotidiano que todos, brancos e pretos que tentavam levar uma vida honesta, sofríamos. Provavelmente sem terem essa consciência, o que muitos cavaram ali durante anos foi um barril de pólvora. Outros fizeram-no conscientemente, claro: não me é estranho ouvir professores explicarem-me que nós, os assaltados, não tínhamos outro remédio que não fosse encolhermos os ombros perante os roubos de que éramos vítimas, porque isso era uma certa forma de reparação social com a qual teríamos de ser complacentes.
Na verdade, apesar do desconforto, do medo e de ter de aprender a sobreviver incólume, não era difícil chegar-se à conclusão de que nada do que a convivência tinha de pior advinha de factores raciais. Brancos, pretos, indianos, havia antes um elemento que nos unia ou separava e não era a cor da pele, mas a existência ou não de uma estrutura familiar e de uma moral doméstica que recusava a cultura do gangue – e, apesar disso, sempre seria mais difícil para eles, os que não eram brancos, apanhar o elevador social. O racismo existia, existe, existirá talvez sempre, lamentavelmente, em todas as sociedades compostas por seres humanos de todas as raças. Mas se há coisa em que estamos a falhar, como comunidade, não é no foco que temos no tema exclusivo do racismo. É na forma como, mediaticamente, nos círculos bem pensantes, se dá maior relevância ao alegado «racismo de Estado» e se ignora a importância da estrutura familiar, e da moral, ao mesmo tempo que o país deixou estagnar o elevador social e se fecharam as melhores portas a quem vem das margens e dos lados B da sociedade. É verdade que os próprios bairros não podem ser benevolentes com as minorias que lhes dão má fama, mas não é menos verdade que isso não se faz sem ajuda. Como é verdade que a polícia é mais garantia que ofensa à liberdade. Mas não parece muito ajustado falar-se tanto como se falou nos últimos tempos em «policiamento de proximidade», ignorando as causas que levaram a que ele tivesse terminado, há uns anos, na Cova da Moura, por exemplo. O primeiro passo terá de ser dado pela própria comunidade, que pode e deve rejeitar o desgraçadismo, a cultura da vítima e da desresponsabilização individual.
Se o jornalismo quer, de facto, ser útil, talvez devesse promover mais a busca de soluções ponderadas e sensatas agora que o assunto morreu, e não voltar lá apenas quando uma nova desgraça se der e tiver espaço mediático para ocupar. Podemos perfeitamente estar a desperdiçar muitos dos nossos possíveis melhores em benefício de coisa nenhuma. Excepto as minorias de criminosos e as minorias de radicais, os grandes conquistadores de terreno. O jornalismo-activista, incluído nesta última minoria de radicais, infelizmente, vai ganhando espaço para agir em prejuízo dos mais fracos, e talvez se contente assim. Mas quem tem poder, mediático, constitucional ou ambos, e não está ainda doido varrido, tem obrigação de fazer muito mais e melhor.