Apresentei-me a uma mesa de voto como delegada num cenário partilhado por centenas em todo o país. Oito horas da manhã, uma escola primária e as duas primeiras pessoas na fila. Estão para lá dos 70 anos de idade, na certa… têm mobilidade reduzida, muita vontade de votar e o antigo número de eleitor na ponta da língua. O Sr. Silvério não se aguenta mais de cinco minutos em pé, levantou-se para exercer o seu direito e voltou a sentar-se sobre um corpo já cansado, mas de consciência leve. E não foi caso único. São muitos os que num esforço enternecedor levam a sua participação muito a sério, deixando de cara fechada os que ficaram no sofá ou na esplanada. Seguem-se outros dois, vieram cedo porque ao Domingo também é dia de trabalho. Vão chegar atrasados, mas para a Junta não se pode faltar, dizem-nos apressados.

Os membros da mesa estão confusos no meio de listagens, regras e papelada. São cinco de vários quadrantes políticos, sem que isso tenha grande relevância neste dia de sol. Cumprem escrupulosamente o que lhes dizem e matam o tempo com as histórias da terra, as pequenas coscuvilhices e as conversas de circunstância com os que entram.

Segue-se o Paulo. Aproveitou a corrida matinal para vir votar e traz com ele o Pantera, um labrador preto dos olhos às patas, de pelo lustroso e postura inquieta. Não se sabe ao certo se o animal o pode acompanhar, mas também não há nada que diga o contrário. Está atordoado e finca-se ao chão com toda a sua força, recusa-se a avançar…lá terá as suas razões. Pelas nove horas o fluxo para.  Talvez melhore depois da missa, dizem os especialistas que já andam nisto desde as legislativas de 82. Entretanto, há um senhor indignado pelo seu nome não constar na lista e refugia-se na nossa sala sem deixar de reclamar da temperatura e das cadeiras. O mundo está contra ele e nós com sono e alguma fome.

O atual presidente da Junta faz guarda ao território. Causa incómodo e agitação, mas nada que perturbe o outro candidato que acabou de chegar. Medem-se pela esquina do olho sem se abeirarem. O mais novo diz que hoje já ganhou, a filha entrou no curso de Medicina e que não há melhor posição para ajudar o país e as pessoas. Cobre-se de orgulho enquanto o seu opositor faz charme às catequistas de serviço. Há um misto de gente no recreio, muitos estão aprumados como num dia de festa, porque votar ainda é um ato solene que merece fato e gravata, mas também lá estão os ténis coloridos e os chinelos descontraídos. Nas urnas cabem todos os estilos, credos, raças e convicções. É dia de rever os vizinhos, os amigos antigos e trocar memórias sobre a professora Isaura que nos ensinou todos a ler.

A meio da tarde já se fazem contas à abstenção. Elevada é a certeza, quão desastrosa é a dúvida. Paira uma certa frustração nas caras de quem está de pé desde madrugada e que acredita que o seu contributo para a democracia não termina nos cinquenta e poucos euros que vai receber. Às cinco, quase que já se podem lavar os cestos, parado, muito parado. Ainda alimentamos a esperança nos que vêm sempre à última. Vi poucos jovens com aquela emoção de quem vota pela primeira vez, os olhos vibrantes de quem já toma decisões de adulto.

Às oito fecharam-se as portas e abriram-se as urnas. Seguiu-se uma série de trâmites processuais, separaram-se os vencedores dos vencidos, especularam-se possíveis explicações, renovou-se a esperança. Na verdade, é aqui que começa o que há-de vir, o trabalho que interessa, o melhor para quem votou e para quem também não o fez.

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