Longas filas para levantar dinheiro nas caixas de multibanco. Supermercados a começarem a ficar com as prateleiras vazias. Automobilistas em demoradas esperas para encherem os depósitos das suas viaturas. A notícia de que os bancos estarão fechados até ao dia do referendo. Uma enorme expectativa sobre como será o dia de amanhã. E, claro, muito medo.

O referendo sobre a mais recente proposta de acordo do Eurogrupo será apenas no próximo domingo, até lá muita coisa pode acontecer. Mas a Grécia, que já estava mal, está agora muito pior. Pior na economia. Pior socialmente. Pior nas finanças públicas. Pior na confiança nas instituições (como o sistema bancário). Pior no clima politico e até pior no respeito pelas regras democráticas.

Claro que ainda há alguns lunáticos que acham que tudo está a correr maravilhosamente, mas não creio que sejam acompanhados por muitos portugueses. Acompanhado hoje, porque ainda há bem pouco tempo o discurso era outro, de encantamento com Tsipras e Varoufakis. Ou de elogia à sua abordagem “intransigente” das negociações.

A crise grega dura há tanto tempo que, por vezes, temos a sensação de repetir argumentos. O que até seria natural: logo no dia seguinte às eleições gregas escrevi que então é que começavam os dias difíceis do Syriza. Não conhecia ainda a arrogância de Varoufakis nem a atracção pela roleta russa de Tsipras, mas não era difícil prever que um país dependente de empréstimos para se manter à tona de água teria sempre dificuldade em conseguir novos empréstimos dizendo, ao mesmo tempo, que não pretendia pagar os antigos. É certo que tudo correu ainda pior do que se previa, 0 que é fruto de uma estratégia negocial suicida, da ausência da qualquer real margem de manobra para chegar a um acordo e ainda de algo que aqui lembrei a semana passada, a real natureza do Syriza. Mas o que arrepia é que, mesmo sem um Syriza português, podíamos ter ido pelo mesmo caminho.

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Há dois anos e meio, pouco depois do “enorme aumento de impostos” e da crise da TSU, cheguei a temer, e escrevi-o, que provavelmente não escaparíamos a um destino semelhante ao dos gregos. Nessa altura quase toda a nossa elite andava pelas televisões e descia às ruas para proclamar a impossibilidade de atingir os objectivos e pedir negociações mais duras. Foi o tempo em que até o Presidente da República se juntou ao coro e anunciou a famosa “espiral recessiva” que nunca se materializou. Ninguém imaginava que fosse possível evitar um segundo resgate, muito menos que se conseguisse uma “saída limpa”.

Na verdade, conhecendo a nossa natureza e, sobretudo, a o egoísmo e a cobardia de boa parte das nossas elites, não era difícil imaginar um destino tão triste como o grego. Podíamos fazê-lo à moda de Sócrates, prometendo à Europa medidas e metas que depois nunca cumpriríamos, ou podíamos fazê-lo à moda grega, de Papandreou ou de Samaras, queixando-nos sempre de que as medidas “não iriam funcionar” e, depois, fazer tudo arrastando os pés. Sabemos onde nos conduziu o método Sócrates, com os seus três PEC (já nem falo do quarto), tal como sabemos no que deu o caminho grego.

Nestes dias em que regressamos a casa sem novos sobressaltos e, ao abrir a televisão, vemos o que se passa em Atenas ou Salónica, é bom recordar que nos podia ter acontecido o mesmo. Que até esteve quase a acontecer-nos o mesmo na crise do verão de 2013. Há por aí muita falta de memória, mas há coisas que não podem nem devem ser esquecidas.

Um dia se fará, com mais distância e mais dados, a história comparada dos resgates da crise das dívidas soberanas, mas há um ponto que podemos dar já por adquirido: o nosso ponto de partida era especialmente difícil. Éramos, em termos comparativos, mais pobres do que os gregos, vínhamos de dois anos com o défice público acima dos 10%, tínhamos uma dívida pública a crescer de forma descontrolada e – aspecto demasiadas vezes esquecido – uma dívida externa que era, em termos proporcionais, das maiores do mundo. Isto para além de tudo o que estava escondido debaixo do tapete, dos encargos futuros com as PPP às dívidas colossais de algumas empresas públicas.

A nossa tarefa não era mais fácil, a nossa troika não foi menos exigente – a nossa atitude é que foi diferente. No sector privado na economia e na direcção do governo. Nada demais, pois todos sabemos como muito ficou por fazer. Mas o suficiente para já estarmos a deixar para trás a parte mais difícil do caminho das pedras.

Dir-se-á, e eu também o disse e digo, e também o escrevi, que países como Portugal (e a Grécia por maioria de razão) acumularam dívidas que pesam excessivamente sobre as suas economias, pelo que deverão ser reestruturadas. E, na verdade, isso já aconteceu: na Grécia com um enorme haircut da dívida em mãos privadas, em Portugal através de iniciativas mais discretas de troca de dívida e mudança de maturidades. É um caminho que, no caso português, continuará a ser prosseguido, espero eu, mas que depende muita da relação de confiança entre credores e devedores. O que o nosso país conseguiu – e isso devemo-lo ao Governo, o seu a seu dono – é ter conseguido reganhar a confiança dos credores, o que lhe tem dado margem de manobra para alguma renegociação e permitido que gastemos, em proporção da dívida, menos com o pagamento de juros. É apenas um começo, mas é começo.

A abordagem do governo do Syriza a este tema foi diametralmente oposta. Começou por ser quase um “não pagamos”, desapareceu durante algum tempo e reapareceu nas exigências finais do governo grego, quase como pretexto para não aceitar um acordo no qual os credores já tinham feito a sua parte do caminho para irem ao encontro dos desejos de Atenas. Acontece porém que a abordagem agressiva do governo de Tsipras, que culminou com a convocação surpresa do referendo, tornou ainda mais claro para todos os parceiros que não existia gente confiável do outro lado da mesa. A resistência das instituições é assim não só compreensível, como natural e até exigível: porquê continuar a emprestar dinheiro a alguém que não dá garantias credíveis de equilibrar as suas contas? Porquê perdoar dívida quando se está a pedir a emissão de nova dívida e, ao mesmo tempo, a desfazer algumas das reformas levadas a cabo? Para quê ajudar a salvar a pele um político que nos despreza nos dias pares e nos sorri nos dias ímpares?

A aflição dos gregos que correram para as caixas multibanco é por isso da natureza das coisas. O dinheiro já é pouco e pode acabar de um dia para o outro. Os laços com a zona euro são cada vez mais ténues, com o Eurogrupo a reunir sem Varoufakis presente. E todos percebem que insultar os credores sempre que se sobe à tribuna do parlamento pode entusiasmar os radicais, mas só endurece ainda mais a posição de quem tem de mostra boa vontade e paciência. Muita boa vontade e muita paciência, apesar de tudo.

É por isso bem possível que cada dia seja ainda pior do que o anterior. Que mesmo aprovando em referendo o acordo, os gregos percebam que, entretanto, a proposta europeia foi retirada de vez. Que à radicalização do discurso se siga uma radicalização nas ruas, um processo que o país já conheceu. E que até o pouco que sobrava da economia – o turismo – entre em crise profunda, pois os turistas desabituaram-se de levar os bolsos cheios quando partem de férias e agora estão a ser avisados que devem fazê-lo, por precaução.

É também por isso que quando olhamos para trás e nos recordamos de como tantos, tantas vezes, nos recomendaram caminhos semelhantes, só podemos suspirar de alívio. De facto, não nos aconteceu, mas podia ter acontecido.

E, para sermos realmente honestos, ainda não estamos livres que nos aconteça.